13 junho, 2006

Voz de Mulher com Meredith Monk


A cantora experimentalista Meredith Monk (na foto) é a cabeça-de-cartaz do 1º Festival Voz de Mulher, que decorre no Teatro Aveirense, em Aveiro, nos dias 7 e 8 de Julho, uma co-organização das Segue-me à Capela e do Teatro Aveirense.

O Festival começa na tarde de dia 7 com um workshop de canto tradicional português pelas Segue-me à Capela, seguido de uma conferência da cantora Judith Cohen («A Mulher na Música Sefardita») e um concerto de Meredith Monk, à noite. Noite que é encerrada, em after-hours, com o projecto de música improvisada Cheesecake.

No dia 8, de manhã, há workshop por Judith Cohen («Canto Sefardita e dos Balcãs») e, depois do almoço, Meredith Monk dirige outro workshop («Voz Que Dança, Corpo Que Canta»). À noite o Festival termina com um concerto das Segue-me à Capela e, depois, a apresentação final dos workshops.

12 junho, 2006

Gaiteiros de Lisboa - Sátiros à Solta


O novo álbum dos Gaiteiros de Lisboa, «Sátiro», teve no Natal uma edição limitada (dois mil exemplares) oferecida a clientes e trabalhadores da ANA. Brevemente o álbum estará disponível para o público em geral através da SonyBMG portuguesa. Aqui fica uma curta crítica ao álbum e a recordação de uma entrevista dada por Carlos Guerreiro ao BLITZ, em 2004, publicada na secção «52 Personalidades da Música Portuguesa».

Gaiteiros de Lisboa
«Sátiro»
SonyBMG

Quem porventura esperava um quinto álbum dos Gaiteiros de Lisboa acomodado e preguiçoso - afinal, já parecia que tudo tinha sido re-inventado (e bem) pelo grupo -, deve esperar, pelo contrário, um álbum cheio de surpresas, boas ideias e passos em frente. Um álbum variadíssimo, inventivo, com o senão (pelo menos na edição da ANA) de um alinhamento que poderia ser bastante melhor. Um álbum em que se encontram temas de inspiração arábica-medieval («O Fim da Picada») ou devedores de José Afonso («Nem Fraco Nem Forte»), um mergulho de cabeça na tradição-mais-tradição-não-há («Pracá-dos-Montes»), uma semi-rockalhada com a cadência de «Roadhouse Blues», dos Doors, com o violino de Manuel Rocha, da Brigada Victor Jara, a ajudar («Comprei Uma Capa Chilrada»), um extraordinário devaneio rítmico e melódico («Haja Pão»), uma versão de «Movimento Perpétuo», de Carlos Paredes, entre Bach, a Penguin Cafe Orchestra e a música de Michael Nyman para filmes de Peter Greenaway, outra, lindíssima, do tradicional alentejano «Se Fores ao Mar Pescar», e outras, divertidíssimas, da «Chamarrita do Pico» e d'«As Freiras de Santa Clara» (esta com picante...). E ainda um fado inusitado e absolutamente surpreendente feito de flautas e da voz de Mafalda Arnauth. (8/10)


CARLOS GUERREIRO
ELOGIO DO ARTESÃO

Carlos Manuel Ramos Guerreiro nasce em Lisboa a 26 de Julho de 1954. Guerreiro diz que não tem grandes ídolos, apesar de ter referências, e nesta entrevista destaca «os quatro santinhos do meu altar: Zeca Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto», que determinaram a sua atitude musical e social.

Há uma canção de Sérgio Godinho que se poderia aplicar na perfeição a Carlos Guerreiro, «O Homem dos Sete Instrumentos», mas há outra, também de Godinho, que é - mesmo! - a cara de Guerreiro: «Elogio do Artesão». Multi-instrumentista, cantor, compositor, escultor, inventor de instrumentos, professor... Carlos Guerreiro é um homem do Renascimento que, segundo confessa já na parte final desta entrevista, levou uma vida, «eu e os outros membros do grupo», diz, a preparar-se para a sua grande criação musical, os Gaiteiros de Lisboa, banda-charneira da música portuguesa de inspiração tradicional mas que, da tradição, salta depois para a sua reinvenção e recriação absolutas.

E essa «vida» começa em Almada, talvez aos 12 anos, quando está a tocar num «xilofone deprimente» e pede ao pai que lhe ofereça uma viola como prenda. A viola chega, mas quando tem más notas, o pai tira-lhe as cordas da viola, como castigo, para não tocar. Anos depois, com 15 anos Guerreiro começa a compor, influenciado pelos artistas do «movimento baladeiro» que via no programa de televisão «Zip-Zip». E é proibido de cantar no liceu porque, para além das suas músicas, também tocava «coisas do Zeca Afonso e outras canções contra o Governo». Isto passa-se numa altura em que «fugir à polícia era uma espécie de desporto radical». Quando começa a compor, diz Guerreiro, «plagiava os meus ídolos todos, mas plagiava-os de uma maneira tão inocente que dá vontade de rir... Plagiava o Zeca, plagiava o José Barata Moura, o Manuel Freire, plagiava-os a todos». Na adolescência, Guerreiro ainda passa por um grupo de baile do Feijó, os Scorpios, mas detestava aquilo, «era uma seca estar ali a tocar só para servir um ritual de acasalamento, embora não tenha nada contra os rituais de acasalamento (risos)», e por um grupo rock, formado no liceu, com um nome compridíssimo: Eighteen Fifty-Five Pop Psychadelic All Dimension and Revolution Band (!!!).

Em 1975, Carlos Guerreiro começa a cantar e a tocar com o GAC - Grupo de Acção Cultural/Vozes na Luta, grupo pioneiro de recolha e recuperação do cancioneiro tradicional português, onde Guerreiro encontra, entre muitos outros, Rui Vaz - agora seu companheiro nos Gaiteiros de Lisboa - e José Mário Branco. Branco, outro dos «santinhos» do seu altar e o primeiro com quem trabalhou. «Tive a sorte de trabalhar com todos os meus ídolos: o Zé Mário, o Sérgio, o Zeca e o Fausto». O GAC, que tinha nascido no ano anterior, é em 75 liderado por José Mário Branco (depois de anos de exílio e gravações em França), e a escolha dos seus membros recai em parte do Coro de Almada, de que Guerreiro fazia parte, e noutros coros. Carlos Guerreiro pertence ao GAC durante toda a existência do grupo, participando em álbuns seminais como «A Cantiga É Uma Arma» ou «Pois Canté!». O percurso do GAC - que marcou fortemente esse período musical e politicamente e foi, também, o germe de muitos grupos de música popular e tradicional que viriam a formar-se depois - termina em 1978. Por essa altura, Guerreiro tinha terminado o Curso de Educação Pela Arte, do Conservatório de Lisboa, e continua a tocar - nesse ano acompanha José Afonso (outro dos seus ídolos) em concertos e, depois, toca com a cantora Shila (Sheila Charlesworth, ex-mulher de Sérgio Godinho), participa em discos de Júlio Pereira e toca com Fausto, em concertos em Espanha e Portugal.

Do seu trabalho com os «santinhos» - Sérgio Godinho viria depois -, Guerreiro diz que «foram eles que me formaram. Foi com o Zeca que eu percebi que a música portuguesa poderia ter qualidade e comecei a perceber que a música portuguesa poderia ser boa e má. Depois, quando comecei a ouvir José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto, o círculo fechou-se». E a música de Carlos Guerreiro, como criador, deve a estes nomes muito mais do que se poderia pensar. Como ele próprio admite: «na música, a recriação é um plágio criativo. Ao longo da minha vida tenho roubado ideias a uns ou a outros, mas aprendi a disfarçá-lo bem (risos)».

Durante alguns anos, Carlos Guerreiro dá aulas nos Açores. E em Novembro de 1984 - o mês de nascimento do BLITZ -, Guerreiro estava «a mudar as fraldas» ao seu primeiro filho, que nasceu alguns meses antes. E acrescenta: «Curiosamente, nesse ano, a minha vida mudou substancialmente porque estava a voltar dos Açores - onde estive a dar aulas - e a pensar no que iria fazer no futuro. E estava a tocar com Fausto e Sérgio Godinho. Se calhar cortei tardiamente com a adolescência - já tinha 30 anos (risos) - e comecei a ver a vida de uma forma simultaneamente mais adulta e mais livre». Com Fausto toca em vários espectáculos e participa no «concerto que me deu mais gozo até hoje, no Coliseu dos Recreios». E com Sérgio Godinho trabalha durante 5 anos.

Depois dos anos passados com Godinho, Guerreiro vai estudar para a Fundação Ricardo Espírito Santo, devido ao seu amor por outras actividades: a escultura em madeira e a construção de instrumentos musicais, uma paixão que tinha começado nos Açores, «onde tive tempo para falar com construtores e para fazer instrumentos: foi um período da minha vida muito rico e tranquilo». Mas é no início dos anos 90, quando Guerreiro está convencido que a sua vida passará a ser dedicada ao trabalho de «artesão» que a música volta a pôr-se no seu caminho: é convidado para tocar com os Sétima Legião - onde conhece Paulo Marinho, outro dos seus companheiros nos Gaiteiros de Lisboa - num concerto especial e participa nas gravações de «Auto da Pimenta», de Rui Veloso. E é Veloso que o convida a voltar aos concertos, integrado no seu grupo: «nem queria acreditar que ia fazer parte de uma banda rock! Com o Rui Veloso tocava tudo: sanfona, guitarra, teclados MIDI... Estava convencido que ia tocar essencialmente coisas do "Auto da Pimenta", mas acabámos a tocar novamente muitas coisas de um álbum dele de que eu gosto muito, o "Mingos e Os Samurais"».

E depois de muitos anos a tocar a música dos - e com os - outros, Carlos Guerreiro lança-se, em 1991, à grande aventura musical da sua vida, os Gaiteiros de Lisboa, ao lado de Rui Vaz, José Manuel David, José Salgueiro, Paulo Marinho e, numa primeira fase, José Mário Branco (que com eles grava o primeiro álbum, Invasões Bárbaras, de 1995). «O que se passou comigo também se passou com os outros músicos dos Gaiteiros. E foi nos Gaiteiros que avançámos para criações nossas. Nos Gaiteiros senti que tinha terreno livre para fazer tudo o que me apetecesse. E o mesmo sentiram o Rui Vaz, o José Manuel David, etc... Foi uma confluência de vontades, com plena liberdade. Partimos do nosso gosto pela estranheza das coisas... e se um dizia mata, o outro dizia esfola. E ainda estamos nessa fase; aliás, os Gaiteiros só têm sentido se continuarem assim. No dia em que os Gaiteiros estagnarem, morrem». Nos Gaiteiros - que compõem originais mas também recriam, refazem e «destroem» temas tradicionais -, Guerreiro teve também espaço para mostrar ao mundo os estranhos instrumentos que constrói na sua oficina - desde sanfonas a coisas como os túbaros de Orpheu ou a cabeçadecompressorofone. E à sua actividade educativa junto de crianças - nos últimos anos, também tem dado aulas no Centro de Paralisia Cerebral da Gulbenkian - foi buscar romances e lenga-lengas. Isto, para além da prática de canto coral, das recolhas de Michel Giacometti e outros, do gosto comum pelas gaitas-de-foles, das suas referências já assumidas e de muitas outras que foi «acumulando» ao longo dos anos.

Com os Gaiteiros de Lisboa, Guerreiro gravou os álbuns «Invasões Bárbaras», «Bocas do Inferno» (1997), «Dançachamas» (ao vivo, 2000) e «Macaréu» (2002), para além de dois originais editados na colectânea «Novas Vos Trago» (1998) e da sua participação - a solo ou como Gaiteiro - em discos e concertos de variadíssimos projectos. Do percurso com os Gaiteiros, Guerreiro destaca como momentos mais significativos a gravação do disco «Dançachamas», o Prémio José Afonso atribuído aos Gaiteiros, as participações com outros músicos e grupos (na Galiza, na Córsega, no Alentejo, com os Vozes da Rádio...), um concerto em Itália com as pessoas a atirar serpentinas e rebuçados para o palco ou o surpreendente concerto na Tenda Raízes do Rock In Rio-Lisboa, no dia do heavy-metal no palco principal, com dezenas de rapazes e raparigas ao pulo e ao mosh em frente ao palco em que os Gaiteiros tocavam - «quando fui para lá, pensei "que chatice, ninguém nos vai ligar nenhuma". E depois senti que tínhamos lugar no meio desta história toda».

Como consequência, lógica, da sua importância como criadores de música portuguesa - ou recriadores de música tradicional e popular portuguesa -, os Gaiteiros têm influenciado inúmeros novos grupos que também vão à música tradicional sem nela se deter ou deixar atolar. Guerreiro acha que isso é lógico: «no GAC nós fomos pioneiros na utilização de recolhas e na sua integração num grupo urbano. Mas depois vieram muitos outros grupos... Mas começámos tarde - em França e na Irlanda isso já estava feito muitos anos antes... Há grupos novos que nos tomam como referência mas que, mesmo que nós não existíssemos, existiriam na mesma. Mas chateia-me que, às vezes e nalguns casos, não tenha uma maior profundidade a nível etnográfico e seja feita de coisas que eles apanham um bocado no ar».

10 junho, 2006

Nobody's Bizness - É Só Um Aviso...


A voz de Petra é maravilhosa nos blues e jazzes que canta; as guitarras - principalmente a slide-guitar - parecem mesmo nascidas nas margens do Mississippi; a voz e a harmónica de CatMan dão o lado mais sério, grave e rezingão; e também há um baixo e, agora, uma bateria e por vezes um piano (nas mãos mágicas de CatMan). E tudo isto é blues - puros, verdadeiros, cheios de alma e vísceras e coração - feito por portugueses e agora disponível em CD («Ao Vivo na Capela da Misericórdia - Sines 2005», ed. You Are Not Stealing Records), e adivinha-se outro para breve; no MySpace (http://www.myspace.com/nobodysbiznessband); e ao vivo em variadíssimos locais, principalmente no Catacumbas, Bairro Alto (onde vão voltar na quarta-feira, depois de nesta semana terem lá dado um concerto inesquecível). É só um aviso (ou vários)...

08 junho, 2006

Ali Farka Touré - À Espera de «Savane» (parte 3)



Para encerrar o «capítulo» Ali Farka Touré, de boas-vindas a «Savane», aqui ficam dois textos paralelos: um relativo a «In The Heart of The Moon» e discos editados na mesma altura que, de alguma forma, se relacionam com esta parceria de Ali Farka com Toumani Diabaté; o outro, de delírio (sublinha-se: delírio) proto-musicológico sobre uma eventual raiz original do fado: o Império Mandinga. Os dois textos foram originalmente publicados no BLITZ em Junho do ano passado.

ALI FARKA TOURÉ, TOUMANI DIABATÉ (& OS OUTROS)
AZUL ESCURO

«In the Heart of the Moon» (World Circuit/Megamúsica), é o aguardadíssimo álbum de colaboração entre o mestre dos blues malianos Ali Farka Touré (que a Europa «descobriu», principalmente, depois do álbum de colaboração com Ry Cooder, «Talking Timbuktu») e o respeitadíssimo tocador de kora, também maliano, Toumani Diabaté (igualmente com uma parceria célebre com um americano, Taj Mahal, no álbum «Kulanian»). E «In the Heart of the Moon» é um disco de uma beleza rara, feito a um mesmo tempo de simples e intrincadas filigranas de som, construídas pelos dedos ágeis de Ali Farka na guitarra (que dá a base simples) e de Toumani na kora (com um interminável caleidoscópio de sons a tiracolo).

Ali vive no norte do Mali, em Niafunké, paredes meias com o deserto do Sahara e é de cultura Arma, Songrai e Peul, enquanto Toumani é um griot (da linhagem antiga de contadores de histórias através da música) de etnia Mandé. Mas, apesar das diferenças culturais e étnicas, isso não impede que os dois, neste álbum, se entendam à primeira. O álbum foi gravado de improviso, em Bamako, nas mesmas sessões que resultaram em mais dois discos: um de Ali (aqui em guitarra eléctrica e voz) com dois tocadores de n'goni e outro de Toumani com a Symmetric Orchestra, ambos a editar nos próximos meses pela World Circuit.

Em «In the Heart of the Moon» há alturas em que parece estarmos a ouvir um blues muito antigo, outras vezes um fado perdido em África (e o timbre da kora também ajuda à sensação), outras vezes uma morna ali vizinha, outras sons das Caraíbas. No concerto de Ali Farka Touré no Bozar, em Bruxelas, há algumas semanas, essas sensações são ainda mais evidentes, tanto quando Ali Farka toca e canta a solo ou com dois intérpretes de n'goni, como nos três temas, absolutamente mágicos, que protagonizou com Toumani. Neste concerto, Ali esteve três horas em palco, ora com a guitarra acústica, embalada pelos n'gonis, congas e cabaça, a passear - em transe - pelo Sahara e pelo Mali, ora em guitarra eléctrica nuns blues que viajam sobre campos de algodão americanos (e no psicadelismo, e no rock ácido...), ora com Toumani (e com um terceiro músico no baixo eléctrico) ajudando a fazer uma música maior do que a nossa imaginação alguma vez conseguiria desejar.

Um dia depois, numa conferência de imprensa, um jornalista europeu insiste em perguntar a Ali se a sua música é influenciada pelos blues. Ali só responde «eu faço música africana». Como se fosse um dado adquirido que os blues nasceram ali na sua terra ou lá muito perto. E diz mais coisas importantes, como a polémica frase «não há afro-americanos. Há negros na América mas eles já não sabem de que cultura, etnia, dialecto ou região descendem...».

Da mesma «família» de «In The Heart of The Moon» é o novo álbum de Boubacar Traoré, «Kongo Magni» (Marabi/Dwitza). Herói da música do Mali nos anos 60, esquecido depois e «recuperado» para a música em meados dos anos 80, Boubacar continua neste álbum belíssimo a fazer a ponte entre a música mandinga e os blues (e a presença irónica de uma harmónica em alguns temas ainda mais sublinha a herança). O acordeão de Régis Gizavo (de Madagáscar) leva ainda a música de Boubacar - e isto é tão bonito!! - para a Índia, o Nordeste brasileiro, o cajun e o zydeco.

Documento de uma altura de afirmação da música africana é a edição, agora, de um álbum perdido de colaboração entre dois malianos, o cantor Salif Keita e o guitarrista Kante Manfila, que gravaram as fitas originais deste «The Lost Album» (Cantos/Megamúsica) em 1980, na Costa do Marfim. Acompanhados por kora, balafon, um coro feminino, piano e trompete, o álbum flui naturalmente entre a música de raiz maliana (mas também pelo jazz e música cubana).

«Mandekalou - The Art and Soul of the Mande Griots» (Syllart/Megamúsica) é uma excelente introdução à música dos griots mandingas («mandé jéliou» em mandinga) e basta ouvir este álbum para perceber como esta música de transmissão oral de histórias e mitos - uma CNN ancestral - pode ser uma música de comunhão absoluta (neste disco encontram-se, a colaborar em conjunto, músicos e cantores de vários países e várias gerações).

Por sua vez, a colectânea «Le Blues Est Né en Afrique» (Cantos/Megamúsica) - só o título diz tudo -, é mais um manifesto na defesa da ideia da música oeste-africana como berço dos blues. Temas de cantores e/ou músicos (malianos, guineenses, senegaleses, congoleses...) como Idrissa Soumaoro, Salif Keita, Ismael Lo, Bambino, Tsahla Muana ou Kerfala Kanté «defendem», facilmente, a tese.

Finalmente, a colectânea «The Sahara» (World Music Network/Megamúsica) viaja pelo deserto - e suas «margens» - unindo as pontas da música gnawa, mandinga, tuaregue e outras. Este disco da excelente série The Rough Guide To... mostra a música feita pelos povos que habitam o Sahara - sim, há muitos milhares de pessoas que vivem neste imenso deserto - e nas suas vizinhanças, do gnawa de Hasna El Becharia aos blues ácidos dos tuaregues Tinariwen, passando pela música de luta e libertação de artistas ligados à Frente Polisário.


O FADO NASCEU NO MALI?


















Há um chavão anglo-saxónico quando se fala de fado (e também das mornas e do choro e chorinho brasileiros...): «são os blues portugueses» (como da morna dizem «são os blues cabo-verdianos»). E se eles, por portas e travessas, tivessem razão?... Esta é uma teoria empírica, não científica, não historiográfica, não etno-musicológica e que pode ser vista apenas como um delírio livre sobre factos dispersos... Mas vamos lá:

1 - Já há bastante tempo que é um dado histórico aceite por quase toda a gente que os blues - música negra que se foi desenvolvendo no delta do Mississippi no séc. XIX e inícios do séc. XX - têm a sua origem na África Ocidental - a zona do antigo império mandinga que passa pelo Senegal, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau e, principalmente, Mali --, teoria defendida por Samuel Charters (nomeadamente no seminal livro «The Roots of the Blues - An African Search») e, mais recentemente, pela série de filmes sobre os blues supervisionados por Martin Scorsese.

2 - Paralelamente, e apesar de terem provocado polémica no início, as teorias de José Ramos Tinhorão - nomeadamente no livro «Fado - Dança do Brasil Cantar de Lisboa (O Fim de um Mito)» - que defendem que o fado teve origem no lundum (ou lundu) brasileiro estão a ser cada vez mais aceites (vide livro de Rui Vieira Nery editado na colecção de discos de fado do jornal Público).

3 - Esta teoria defende que o fado é uma evolução do lundum, uma dança quente, dolente e erótica brasileira (com umbigadas - isto é, contactos da zona genital) nascida no grande caldeirão de culturas africanas que era a Bahia. Esta dança teria sido trazida para Lisboa e aqui teria evoluído para o fado actual, perdendo gradualmente a sua característica dançável, mas mantendo as outras características.

4 - É commumente aceite que o lundum tem origem nos escravos bantos, levados de Angola e Congo para o Brasil. Segundo a «Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura», o lundum é uma «dança também cantada, de origem africana, cuja raiz entronca no batuque... O Lundu tornou-se imensamente popular no séc. XVIII, tanto no nosso país (Portugal) como no Brasil, de onde veio». E no «Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil», o lundum é caracterizado como uma «dança popular brasileira, originária de manifestações musicais trazidas pelos escravos africanos da região de Angola e Congo».

5 - Mas (e aqui entra o «delírio)... e se o lundum não vem dos escravos bantos, mas sim dos escravos malês (ou das trocas entre os dois «grupos»)?... Razões para a minha dúvida: Apesar de haver uma maioria de escravos no Brasil de origem banto (Angola, Congo e Moçambique), na região da Bahia - recorde-se, defendida como o berço do lundum - a maior parte dos escravos era malê (uma corruptela de... Mali), escravos oriundos da zona mandinga, na sua maior parte muçulmanos (tal como ainda hoje a religião principal na zona ocidental de África, devido à sua proximidade com os povos muçulmanos do norte de África... o deserto do Sahara não foi barreira para a evangelização islâmica).

6 - A importância dos malês na Bahia é reconhecida por inúmeros historiadores. E marca do seu seu peso dentro da comunidade escrava é a história do Levante dos Malês, em 1835, uma importantíssima rebelião de escravos em Salvador. Ainda agora a cidade de Salvador celebra esta revolta: no carnaval da Bahia passou um bloco chamado Malê Debalê e um outro, Ilê Aiyê, que homenageou claramente o Mali. E o escritor Antônio Risério escreve, embora apontando algumas dúvidas: «o sucesso do bloco afro Malê Debalê, junto com a revalorização popular das revoltas islâmicas, criou uma espécie de mito em torno dos malês. Hoje na Bahia qualquer negro informado, alguns com certa ponta de esnobismo (compreensível, mas condenável), afirma ser descendentes dos malês».

7 - O lundum ainda é uma forma musical viva, não no Brasil ou em Portugal (ou nas ilhas dos Açores, onde foi importante durante o séc. XIX), mas no Peru (nomeadamente na música da diva peruana Susana Baca, que mantém nos arredores de Lima um instituto dedicado ao estudo da ligação da música africana com a música peruana, o Instituto Negro Continuum) e em Cabo Verde (aqui também chamado landu ou gandum), onde no passado se desenvolveu bastante, principalmente nas ilhas do barlavento e na Boavista. Segundo as teorias mais aceites, o lundum cabo-verdiano foi levado pelos brasileiros para o arquipélago e ali permaneceu. Mas fica outra pergunta: este lundum cabo-verdiano veio mesmo do Brasil? Ou veio de ali de muito mais perto (da Guiné-Bissau e de outros países mandinga), através dos escravos levados do continente ali mesmo ao lado? Ou poderá ser uma mistura das duas coisas?

8 - Repete-se. Esta «teoria» é empírica, delirante, feita de umas pontas soltas e, porventura, de outras mal atadas [não entro, por exemplo, na influência da música gnawa de Marrocos na música dos griots e outras manifestações mandingas - e, consequentemente, nos blues norte-americanos... A propósito, não há quem defenda que o fado poderá ter vindo do norte de África?]. Mas ao ouvir este conjunto de discos falados aqui ao lado, não deixo de sentir que há ali, muitas vezes, cordas que vibram naturalmente no meu coração português, digamos, fadista. Cordas vocais, cordas de kora (e como este instrumento soa tantas vezes a... fado) e, principalmente, cordas escondidas na alma.

07 junho, 2006

Ali Farka Touré - À Espera de «Savane» (parte 2)


Continuando a recuperação de textos antigos sobre Ali Farka Touré, cujo novo álbum, «Savane», é editado no dia 17 de Julho, aqui fica mais um texto, este a propósito de «Niafunké» (e de outros álbuns de música africana). Apareceu, sem título, na secção «world extra», do BLITZ.

WORLD EXTRA
(publicado originalmente no ano 2000)

Quando Don Johanson, um respeitadíssimo arqueólogo, descobriu o esqueleto mais completo de um Australopithecus Afarensis, em Hadar, na Etiópia, estava a ouvir no seu gravador «Lucy In The Sky With Diamonds», dos Beatles, uma das suas canções preferidas. O esqueleto, do sexo feminino -- e, na altura, o hominídeo mais antigo que já se tinha encontrado --, foi por isso baptizado com o nome de Lucy e tornou-se uma vedeta entre os estudantes de História de todo o mundo.

A ironia da situação estava em que, procurando as origens da espécie humana em África -- onde elas estão, de facto, até prova em contrário --, se estava ao mesmo tempo a ouvir uma das melhores criações artísticas do século XX, uma música feita por brancos (a pop e o rock'n'roll) mas completamente devedora da música negra (os blues, os rhythm'n'blues, o jazz...). Como se um fio invisível unisse as várias etapas da pilhagem a que o continente africano foi sujeito ao longo dos séculos (dos milénios?) por povos exteriores. Dos escravos que foram de Angola, Guiné, Costa do Marfim, para o Brasil, levados pelos portugueses, ou das relíquias faraónicas que foram roubadas pelos franceses, até à música que saiu de África para Cuba, Brasil ou Estados Unidos para quase nunca mais voltar.

Este texto fala de pilhagens, mas também de reapropriações e de viagens de ida e volta, sabe-se lá de onde para onde, de quem para quem (o genial guitarrista Ali Farka Touré e a colaboração dos Masters Musicians of Jajouka com Talvin Singh). E também de alguma música que esteve escondida durante décadas, como é o caso das reedições de Fela Kuti, da música da cabo-verdiana Nácia Gomi ou da colecção «African Renaissance», com gravações dos arquivos da rádio oficial sul-africana. Os discos de que aqui se fala - e que podem ser descobertos facilmente em qualquer boa discoteca - são importantes, não como documentos (históricos ou outros) mas como obras de arte absolutamente acabadas, passe o quase-paternalismo e quase neo-colonialismo da frase. São assim porque o são. Só isso. Breve resenha, em jeito de ficha analítica de arqueólogo amador.

Ali Farka Touré - «Niafunké» (World Circuit/Megamúsica, 1999). Origem: Mali. Ali Farka Touré é um guitarrista de blues. Dito isto assim, de uma forma crua, parece não ter importância. Há guitarristas de blues em todo o lado. Do Mississippi a França, guitarristas de blues é o que não falta. Mas Touré é diferente de todos os outros. Ele toca e só por tocar duas ou três frases nós apercebemo-nos imediatamente de onde vem aquela música que pensávamos durante muitos anos vir dos negros da América. Vem deles, é claro, mas vem principalmente dali, do coração de África. Touré ouviu os grandes mestres dos blues (John Lee Hooker é muitas vezes apontado como uma influência) mas também ouviu muita da música que se faz na zona sub-sahariana em que nasceu. E a mistura das duas culturas é espantosa. Como se víssemos duas verdades parciais mas já estivéssemos a olhar para a verdade absoluta. Uma verdade simples: os blues nasceram em África, sem dúvida. «Niafunké» - mais rude e mais puro que o álbum gravado com Ry Cooder, o igualmente genial (embora diferente) «Talking Timbuktu» - é bem prova disso. E se o início do último tema faz lembrar os Pink Floyd de «Wish You Were Here» isso é só um gesto de ladroagem (consciente?, duvido) que é, no fundo, um acto de justiça poética em relação à contínua prática de gatunagem da música ocidental.

Master Musicians of Jajouka - «Master Musicians of Jajouka - Featuring Bachir Attar», produzido por Talvin Singh (por enquanto só um CD-sampler, com quatro temas e duas entrevistas; Point Music/Universal, 2000). Origem: Marrocos. Novo álbum de um colectivo lendário na cena «world music». Descobertos, digamos assim, por Brian Jones - o igualmente mítico guitarrista dos Rolling Stones - em 1968, com quem gravou o álbum «Brian Jones presents The Pipes of Pan at Jajouka» (a edição original, em LP, não tinha título mas foi assim designada na reedição em CD), o disco obrigou o Ocidente a conhecer a música do norte de África, as suas percussões hipnóticas, as suas vozes melismáticas, as suas gaitas afinadas nos limites dos agudos. A vontade de psicadelismo, de algum misticismo (movido a drogas várias, é verdade) e de transe levou Brian Jones para Marrocos; como outros (George Harrison e, por arrasto, os outros Beatles, foram para a Índia). O curioso é que, trinta anos depois, há um indiano radicado em Londres a produzir um disco do mesmo grupo marroquino. O novo álbum dos Masters Musicians of Jajouka tem a supervisão de Talvin Singh (uma das figuras de proa da frente asiática em Inglaterra, juntamente com os Asian Dub Foundation ou os Transglobal Underground). E mostra a mesma música (com o gaiteiro Bachir Attar como solista) de antigamente, mas com o acrescento (dado por Singh) de modernos ritmos de música de dança. Os puristas podem torcer o nariz, mas os frequentadores de festas bailantes, nomeadamente as de trance psicadélico, vão-lhe chamar um figo. Segundo Talvin Singh, a música de Marrocos e da Índia, apesar dos milhares de quilómetros de distância entre os dois países, tem uma raiz comum, a música que, da Pérsia, seguiu para outras partes do mundo (e a influência da religião muçulmana também não deve ser alheia ao facto, acrescento). Diáspora, separação, descoberta, viagem. A música sempre viveu assim, da liberdade de ir de um lado para o outro...

Fela Kuti - «King of Afrobeat - The Anthology» (caixa de três CDs Barclay/Universal, 2000). Origem: Nigéria. Fela Anikolapu (ou Ransome) Kuti foi um visionário da música africana e, se se ouvir com atenção estes três discos (e os álbuns completos que estão agora a ser vendidos na colecção «Fela - The Authentic Collection», que reúne dois álbuns num CD) de muita da música que se fez depois dele. Estudou música em Londres, no Trinity College, viveu nos Estados Unidos a euforia do rock e do funk, para além de ter sido atingido em cheio pelas ideias do Black Power (o que reforçou ainda mais os seus ideais políticos já bem firmes desde a sua juventude). Quando voltou à Nigéria, na viragem dos anos 60 para os anos 70, começou a criar, com o seu grupo, Africa '70, as raízes daquilo que ficou conhecido como afro-beat. Baseados no jazz, no funk, no rock, no psicadelismo revisto por Sun Ra, e com uma forte intervenção política e social, os temas de Fela Kuti caracterizavam-se por longas introduções instrumentais, com a voz a aparecer só depois de estar muito bem definida a base rítmica e melódica, muito longe da obrigatoriedade de um refrão pop antes da chegada sequer ao primeiro minuto. Uma voz masculina com marcantes coros de vozes femininas e uma base instrumental «ocidental» - guitarras eléctricas, baixo, bateria, teclas, saxofone (e em quase todos estes instrumentos Fela era perito), ao lado de maracas e congas. As suas letras - cantadas em várias línguas, numa tentativa de pan-africanismo - falavam de pobreza, de corrupção, de guerra. Mas também de revolta e de esperança. Fundou uma «república» só sua, com as suas inúmeras esposas. Foi preso e torturado pelo governo nigeriano em 1984. A sua mãe foi assassinada pelos soldados que o perseguiam. Morreu de SIDA em 1997. Isto é curto para retratar a vida de Fela Kuti. Como é curto dizer que a sua música, influenciada-pela-música-ocidental-influenciada-pela-música-africana, abriu depois caminho a coisas tão diferentes como o disco-sound ou o drum'n'bass, o rap (ele que, por sua vez, tinha ficado impressionado com a obra dos Last Poets) ou grupos como os Talking Heads, os Material ou os King Crimson de inícios dos anos 80. Pulsação, encanto, fusão, futuro, liberdade, negritude.

Nácia Gomi -- «Nácia Gomi Cu Sê Mocinhos» (CD Sons D'África, 2000). Origem: Cabo Verde. Nácia Gomi é uma senhora de 75 anos que só agora está a ser revelada ao mundo. Compositora da maior parte dos temas que canta, Nhá Nácia canta o finaçon, feito de voz e batuques, uma música que remete tanto para as polifonias sul-africanas como para o griot da África Central como para os cantos melismáticos do norte de África, e, por muito estranho que possa parecer, para alguns cânticos dos índios norte-americanos. Diz ela que nunca dançou um alegre funaná. Compreende-se: o finaçon é uma música profundamente triste, feita de ladaínhas hipnóticas, circulares e telúricas que aceleram para um transe final. Deus vive ali perto, apesar da aparência desolada da paisagem e da carga histórica que rodeia o sítio em que Nácia vive, o Tarrafal.

Vários - «African Renaissance» (colecção de CDs Eagle Records/Música Alternativa, 2000). Origem: África do Sul. Quarenta anos depois de terem sido efectuadas as gravações - e com o fim do apartheid - estão agora disponíveis as recolhas feitas por técnicos e produtores da rádio sul-africana (South African Broadcasting Corporation). É música perdida nos tempos (a maior parte dos músicos presentes nestes CDs nunca teve qualquer tipo de reconhecimento público sob o regime bóer) e uma enorme miríade de estilos e géneros. Gravados nos anos 50, estes são temas protagonizados por zulus, vendas, tswanas, xhosas, swazis... E aqui podem-se ouvir cantos polifónicos zulu, temas devedores do rock'n'roll e do swing (estes temas um desenvolvimento do género local marabi, nascido nos anos 20 e que misturava as big-bands do jazz com as músicas locais), temas próximos dos merengues e dos sembas angolanos. Há canções gospel mas com os gritos femininos hiper-agudos que são mais conhecidos dos cantares berberes, do lado oposto (a norte) do continente; canções parecidas com o «Lion Sleeps Tonight» (talvez o tema sul-africano mais famoso de que os americanos se apropriaram); delírios rítmicos de percussões em explosão contínua. Diamantes em estado bruto.

É conhecida a romaria que bateristas e percussionistas ocidentais fizeram até África, à procura do ritmo: Ginger Baker, que gravou em 1971 com Fela Kuti. E, depois, Stewart Copeland (dos Police) ou Mickey Hart (dos Grateful Dead), para já não falar nos bateristas de jazz. Mas se calhar está na altura de guitarristas, baixistas, teclistas, cantores, saxofonistas, etc., seguirem o mesmo caminho. Lucy já não é o mais antigo hominídeo descoberto. Os diamantes financiam guerras no continente. Mas ao céu ainda chegam as vozes de África inteira.

06 junho, 2006

Ali Farka Touré - À Espera de «Savane»


Enquanto não é editado o novo álbum de Ali Farka Touré, «Savane», recordam-se aqui alguns textos sobre este génio maliano recentemente falecido... O obituário a propósito da sua morte e a reportagem do África Festival do ano passado, em Lisboa, em que Touré foi o indiscutível cabeça-de-cartaz.


ALI FARKA TOURÉ (1939 – 2006)
(originalmente publicado em Março deste ano)

Ali Farka Touré, o genial músico que mostrou os «elos perdidos» entre a música sub-sahariana e os blues, morreu a semana passada. Mas o seu legado musical - e humano – permanecerá para sempre.

O músico e cantor maliano Ali Farka Touré morreu no dia 7 de Março, enquanto dormia, vítima de um cancro nos ossos de que já padecia quando fez a sua última digressão europeia, o ano passado, e que o trouxe a Lisboa para um memorável concerto em Monsanto. Nesse concerto, Ali Farka tocou para cerca de 10 mil pessoas em transe, em encantamento (no sentido mágico da palavra) permanente perante a música deste senhor que sabia que a sua música era uma forma de expressão muito antiga mesmo quando se socorria de uma guitarra eléctrica para a fazer. Ali Farka sabia-o e demonstrava-o na sua música e dizia-o nas raras entrevistas que dava (inclusive no episódio da série documental dedicada aos blues dirigida por Martin Scorsese): os blues norte-americanos (e por arrasto, o rock e muitas das formas «modernas» de música anglo-saxónica) tinham a sua origem ali, na parte de baixo do deserto do Sahara, nas margens do Rio Niger, onde África começa a ser negra. Ali, nas regiões do Império Mandinga onde os negreiros iam buscar os escravos que levavam para as Américas (do Norte e do Sul), indo com eles a sua música que depois se transformou em muitas músicas (os blues nos Estados Unidos e formas musicais sul e centro-americanas noutros países).

Nesse concerto em Monsanto, Ali Farka teve como convidado especial Toumani Diabaté, o mais respeitado instrumentista de kora do Mali, com quem Ali gravou em dueto o último álbum editado em vida, «In The Heart of The Moon» (recentemente premiado com um Grammy, o segundo da carreira de Ali Farka, depois de «Talking Timbuktu»). Para 2006 está prevista a edição de um novo álbum, gravado durante as mesmas sessões de «In The Heart of The Moon», mas com Ali Farka a ser acompanhado por dois tocadores de n’goni (pequena guitarra de madeira com 3 ou 4 cordas). Para trás ficou uma riquíssima discografia, parte dela editada apenas no Mali nos anos 70 e inícios dos anos 80. O reconhecimento internacional chega em meados dos anos 80, com a edição, através da World Circuit, de «Ali Farka Touré» (1987), a que se seguiram «The River» (1990), «The Source» (1992), «Talking Timbuktu» (1994; ao lado de Ry Cooder), «Radio Mali» (1996; que compilava gravações dos anos 70), «Niafunké» (1999), «Red & Green» (2004; recuperando dois álbuns, conhecidos como «Red» e «Green» devido à cor das suas capas, editados originalmente apenas no Mali) e «In The Heart of The Moon» (2005).

Ali Ibrahim Touré nasceu em 1939 (não se sabe ao certo o dia de nascimento), na aldeia maliana de Kanau, tendo sido o único sobrevivente de uma família de dez irmãos. Talvez por isso, os seus pais deram-lhe a alcunha de Farka, que significa «Burro» (e que na tradição do povo Arma, de que Ali era originário, significa «um animal forte e tenaz»). De religião muçulmana (religião que praticou durante toda a sua vida), Ali passou por bastantes dificuldades durante a infância e juventude. Perdeu o pai ainda criança e lançou-se à vida: foi mecânico, condutor de táxis e de ambulâncias. Mas a música surge-lhe como uma necessidade maior no início dos anos 60. Fez parte de várias bandas, foi artista residente na Rádio Mali, começou então a perceber os laços óbvios que uniam a música da sua região com a música norte-americanma que admirava (de John Lee Hooker a James Brown). E, mais importante ainda, sempre se assumiu como um cidadão e artista que, apesar de Arma, respeitava e amava as outras tribos e culturas do Mali. Ali Farka cantava em songhai, peul, bambara, fula, tamaschek e outras línguas da região. Essa abertura permitiu-lhe ser um dos artistas que contribuiu para a reconciliação nacional no Mali depois da mais recente revolta dos tuaregues. Um bom exemplo dessa reconciliação é o Festival no Deserto, que se realiza desde há alguns anos em Niafunké (e onde participam músicos de variadíssimas etnias malianas, para além de «habitués» como Robert Plant ou os franceses Lo’Jo, co-organizadores do festival), a localidade em que Ali Farka viveu durante muitos anos e cuja agricultura ajudou a desenvolver mercê de modernos sistemas de rega que implantou com o dinheiro que ganhava com a música. Ali Farka foi, nos últimos anos, presidente da câmara de Niafunké (facto «celebrado» no tema «Monsieur Le Maire de Niafunké», de «In The Heart of The Moon»).


COMO UMA RELVA QUE ONDULA
(publicado originalmente em Julho de 2005)

África Festival. Anfiteatro Keil do Amaral (Lisboa), 21 a 24 de Julho.

Vê-se a ponte sobre o Tejo, uma Lua enorme, aviões que passam de minuto em minuto ali mesmo em cima. E há 10 mil pessoas (talvez mais) a ondular à frente do palco. Lentamente, em movimentos vagamente circulares - de transe -, muitas de olhos fechados, algumas de mãos abertas, e todas de coração liberto por uma alegria ou uma fé ou uma revelação qualquer. Mas não estamos no Estádio do Restelo durante o encontro anual de uma seita religiosa. Estamos um bocadinho mais acima, em Monsanto, num belíssimo anfiteatro feito de relva e madeira e água e árvores, e ali à nossa frente está Ali Farka Touré, a sua voz e a sua guitarra eléctrica que convocam os espíritos dos músicos mandingas, dos músicos gnawa, dos vizinhos de ali à volta e dos outros, os primos que nos Estados Unidos criaram (ou recriaram) os blues. Ali Farka já está acima da música... está numa esfera diferente, em que a aura, o carisma, o encanto (e como ele está também encantado connosco!) fazem dele, mais do que um músico, um anjo. E um anjo amigo, que se apaga para deixar brilhar Bassekou Kouyaté em ngoni (pequena «guitarra» de duas cordas) e o convidado especial, na segunda «secção» do concerto, Toumani Diabaté, na kora (a harpa dos países mandingas) – e a repetição do tema «Gomni», uma sem e outra com Toumani, serviu para fazer perceber como a mesma canção pode ter formas tão diferentes (e ambas belíssimas). Aquilo a que estas 10 mil pessoas assistiram não foi na realidade um concerto, mas uma celebração religiosa. No final, Ali toca njarka (um «violino» só com uma corda) e diz que este instrumento foi o seu professor (foi da corda única da njarka que passou para as seis da guitarra).

Ali Farka Touré mereceu o «título» de cabeça-de-cartaz do África Festival, mas todos os outros estiveram também em bom nível. E sempre com muita gente a assistir. Manecas Costa mostrou a sua mestria na voz e guitarras, fazendo um concerto mais festivo do que alguns anteriores, com o n’gumbé guineense a sair muito bem servido (ai as bailarinas!!); e as Zap Mama mostraram que estão mais disco, mais funk, mais soul, até mais hip-hop (com um MC/DJ incendiário) e mais Broadway, embora as riquíssimas harmonias vocais das senhoras (e da filha de Marie, agora também integrada no grupo) ainda brilhem de vez em quando (como no encore). Os moçambicanos Mabulu mostraram que é possível fundir bem o antigo (a marrabenta) e o novo (o reggae, o dancehall, o hip-hop...) e fazer uma festa imensa com cada um dos ingredientes. Waldemar Bastos também animou as gentes, principalmente na segunda parte do seu espectáculo (depois do belíssimo coro de «Muxima») com sembas e «merengues» com «açúcar»; e o congolês Ray Lema foi um acólito de luxo (um Mozart-free vindo de África não se ouve todos os dias) no concerto conjunto com o brasileiro Chico César: nordeste brasileiro, jazz, África, reggae; festa sempre. E na última noite, Cabo Verde bem representado por Lura – que é um animal de palco (canta bem, dança bem...) e cruza com bom gosto funanás, coladeiras e batuque, sim, mas também mbalax e música brasileira – e por Tito Paris, acompanhado por banda, orquestra de câmara e secção de metais, um fantástico «wall of sound» a servir de base a temas como «Curti Bô Life», «Dança Ma Mi Criola» ou um sentido «Sodade» (no encore e em – segundo – dueto com o angolano Paulo Flores). A ondulação continua. E às vezes a relva pode crescer viçosa nas margens dos desertos ou no meio dos oceanos.

Os Festivais Que Aqui Se Verão



Para os mais atentos já não haverá aqui novidade nenhuma, mas nunca é demais recordar o cardápio de alguns dos mais importantes festivais de world, folk, tradicional, etc, que aí vêm neste Verão...


ÁFRICA FESTIVAL

Lisboa, Torre de Belém. 6 a 9 de Julho. Dia 6, Bonga e Cheikh Lô. Dia 7, Tcheka e Oumou Sangaré (na foto). Dia 8, Djumbai Jazz e Tiken Jah Fakoly. Dia 9, Stella Chiweshe e Eyuphuro. Antes disso, como «aperitivo», e no mesmo local, actua no dia 2 Cesária Évora.


FMM SINES

Porto Covo e Sines. 21 a 25 Julho em Porto Covo; 26 a 29 de Julho no Castelo e na Av. da Praia de Sines. Dia 21, Mayra Andrade e Francis Hime. Dia 22, Boris Kovac & L Campanella. Dia 23, Actores Alidos. Dia 24, Vaguement La Jungle. Dia 25, Dazkarieh e Eliseo Parra. Dia 26, Jacques Pellen «Celtic Procession» e K'Naan. Dia 27, Vusi Mahlasela, Gaiteiros de Lisboa, Trio de Rabih Abou Khalil & Joachim Kuhn, Toumani Diabaté & Symmetric Orchestra e Alamaailman Vasarat. Dia 28, Nuru Kane & Bayefall Gnawa, Trilok Gurtu & The Misra Brothers, The Bad Plus, Thomas Mapfumo & The Blacks Unlimited e Tony Allen. Dia 29, Mariem Hassan, Vartinna, Cordel do Fogo Encantado, Seun Kuti & Egypt 80 e Ivo Papasov & His Wedding Band.


INTERCÉLTICO DE SENDIM

Fermoselle (Espanha) e Sendim. Dia 3 de Agosto em Fermoselle; Dias 4, 5 e 6 de Agosto em Sendim. Dia 3, Tamborileros de Fermoselle e DRD. Dia 4, Gaiteiros de Constantim, Célio Pires, Hexacorde & Vanessa Muela e Lúnasa. Dia 5, Jambrina & Madrid, Tamborileros de Fermoselle, Banda de Gaitas y Tambores Beato Fray, Pedro Soler, Mielotxin, Berroguetto, Hevia e DRD. Dia 6, «Missa Solene de Andavias», Banda de Gaitas y Tambores Beato Fray e Pedro Soler.


MED DE LOULÉ

Loulé. 28 de Junho a 2 de Julho. Dia 28, Yasmin Levy, Cristina Branco, BubbleBath, Al-Driçaa, Yin & Yang e Rhákatta. Dia 29, Think of One, Capercaillie, Alzawijazz, Dazkarieh, Yin & Yang e Samarcanda. Dia 30, Souad Massi, Amparanoia, Al-Mouraria, António Molina, DJ Raquel Bulha, Yin & Yang e Ratazanas. Dia 1, Manecas Costa, Babylon Circus, Raspect, Mandrágora, DJ Luís Rei, Yin & Yang e Las Guitarras Locas. Dia 2, Marenostrum & Maria Alice, Orchestre National de Barbés, Klonakity, João Frade Trio, Yin & Yang e Vielas do Fado.


PORTUGAL A RUFAR

Seixal (Quinta da Fidalga). Dias 16, 17 e 18 de Junho. Dia 16, Lokomotiv, Tocá Rufar, Uthan, Big Band Brothers, Pura Mistura, Quarteto Trans(e)tambourins, Gaiteiros de Lisboa (com 30 percussionistas do Tocá Rufar) e The Dead Poets. Dia 17, Pura Mistura, Associação Luso-Caboverdiana de Sintra, Bomba d'África, Bácoto, Trupe Boomerang/Stucatta, Duo Stoyan Yankoulov & Elitsa Todorova, Be-Dom e Terrakota. Dia 18, «700 Tambores em Desfile» (com grupos de bombos de Lavacolhos, Amarante, Mareantes do Douro, Pauliteiros de Miranda e a Orquestra de Percussão Tocá Rufar), Pauliteiros de Miranda, Finka-Pé, Pura Mistura, várias Orquestra de Percussão ao longo da tarde e espectáculo de encerramento com uma orquestra que junta elementos dos Stuccata, Bácoto, Lokomotiv, Uthan, Bidonmania, Tocà Rufar, WOK, O Ó Que Som Tem?, Uthan, Duo Stoyan Yankoulov & Elitsa Todorova e Big Band. Também há exposições, teatro e workshops.

05 junho, 2006

Intro...

Bem-vindos ao Raízes e Antenas - nome inspirado pelo título de um álbum de Macaco (vénia) -, blog dedicado à chamada world music, às músicas tradicionais e tudo à volta (desde que com as raízes na terra e, eventualmente, as antenas no ar). Neste blog vou recuperar textos originalmente publicados no BLITZ, jornal em que trabalhei durante vinte anos - ou melhor, alguns dos textos que resistiram a várias limpezas dos discos duros dos computadores pessoais e de trabalho e, claro, aqueles que se inserem nestes «géneros» (ficando de fora, obviamente, os que tiveram como mote o rock, a pop, o jazz, etc, etc...) -, e publicar textos inéditos, de actualidade (notícias, críticas, reportagens...). Sintam-se à vontade para enviar informações, bilhetes para concertos ou festivais, opiniões, bitaites, bocarras, postas de pescada (a minha gata agradece), discos e maquetas, raízes (de mandrágora e outras) e antenas (de preferência parabólicas e daquelas artilhadas com 300 canais para ver os jogos todos do... Mundial). Até já.