31 outubro, 2006

WOMEX - Todo o Mundo num Palácio


A WOMEX decorreu este fim-de-semana em Sevilha com centenas de participantes na feira e milhares de pessoas de todo o mundo a circular entre os concertos. São centenas de anos de música e todos os quilómetros quadrados da Terra concentrados num palácio de Sevilha de cúpula dourada.

Concertos, showcases, mostras paralelas, foram às dezenas. Da máquina sonora com 19-elementos-19 da fabulosa La Etruria Criminale Banda (na foto), grupo italiano que mistura ska, punk, klezmer, Balcãs e jazz selvagem à John Zorn, big-band com duas secções de metais, duas baterias, laptop, etc, etc... à beleza de The Shin/Project "EgAri", que junta jazz, flamenco e canto e música tradicional georgiana. Da abertura de novos e excitantes caminhos para a música cigana dos Balcãs feita pelos sérvios KAL à tentativa de emulação de Ali Farka Touré feita por Afel Bocoum (no seu trabalho de guitarra... e até num chapéu). Da constatação de que, ao vivo, o francês Sergent Garcia é acompanhado por uma bandona e aquilo é muito mais orgânico, salseiro e festivo ao encantamento dos Adjagas, um gnomozinho e uma fadinha noruegueses a cantarem canções yoik com banda indie Cocteau Twins/Low/Spain por trás. Da confirmação do cabo-verdiano Tcheka (mais, muito mais do que no África Festival em Lisboa) como um enorme compositor, cantor e guitarrista ao delírio klezmer/árabe/Balcãs/surf-rock dos israelitas Boom Pam, com tuba a fazer de baixo e guitarras eléctricas entre Dick Dale e os Beach Boys.

E mais, muito mais. O efeito Peste & Sida dos andaluzes Eskorzo. A música ancestral dos egípcios El Tanbura. O híbrido, quase sempre bem conseguido (ai, os sintetizadores), entre a tradição e a modernidade da fabulosa cantora turca Aynur. O ritmo infernal dos tambores que rodeiam a cantora colombiana Petrona Martínez (na linha de Toto La Momposina). A pop bem feita mas apenas pop dos também colombianos Aterciopelados. O rock global e bastas vezes alucinado do croata Darko Rundek. A fusão nem sempre feliz de música árabe com electrónicas do projecto multinacional Orange Blossom (que nos melhores momentos faz lembrar os Ekova e nos piores os... Deep Forest). O virtuosismo do bandolinista brasileiro Hamilton de Holanda. A festa dos veteraníssimos catalães Los Patriarcas de La Rumba (devem ser todos eles os avós dos Ojos de Brujo!). A mistura, igualmente festiva e absolutamente dançável, de ritmos cubanos com jigs e reels dos escoceses Salsa Celtica. O acordeão alucinado do catalão Tomás San Miguel com as gémeas Txalaparta (que tocam, claro e tão bem!, txalaparta) e um dos Dissidenten nas percussões... E todos os outros que eu não vi, porque era impossível ver tudo (horas e horas de concertos à noite, sempre três em simultâneo em três locais diferentes, um deles, o pavilhão, infelizmente com um som pouco aceitável para um evento destes).

Na feira, durante o dia, o formigar de gente de todos os continentes - e ligada a estas músicas de todo o mundo - dava ao Palácio dos Congressos-FIBES um aspecto de Nações Unidas freak ou de um Baile de Máscaras global. Editores, produtores de espectáculos, agentes, bandas, estruturas governamentais dos países mais esclarecidos (pois: na WOMEX não há nenhum stand do ICEP nem da Secretaria de Estado da Cultura portuguesa nem...). Gente de todo o lado e de Portugal também: dois para a estrutura que junta várias empresas portuguesa, Musica.pt; outro dos Dazkarieh (quase sempre com animadas jam-sessions que juntavam os músicos portugueses a muitos outros); outro dos Blasted Mechanism (o mais cyber de toda a WOMEX, com as máscaras do grupo e a adição de baterias eléctricas feitas com... limões, cortesia de um eco-activista inglês); do Sons em Trânsito; da Bartilotti Produções/Megamúsica.


E, como é habitual na WOMEX, as actividades foram coroadas com o anúncio dos nomeados para os apetecidos Prémios de World Music da BBC - Radio 3, este ano com dois nomes portugueses (e de sangue africano) no rol - Sara Tavares (na foto; autoria de Jurrien Wouterse) e Mariza - e algumas surpresas. A lista completa de categorias e nomeados é este ano como segue: África - Ali Farka Touré (Mali), Bongo Maffin (África do Sul), Mahmoud Ahmed (Etiópia) e Toumani Diabaté (Mali). Américas: Ben Harper (Estados Unidos), Fonseca (Colômbia), Gogol Bordello (Estados Unidos) e Lila Downs (México). Médio-Oriente e Norte de África: Les Boukakes (Argélia/França), Ghada Shbeir (Líbano), Natacha Atlas (Egipto/Reino Unido) e Yasmin Levy (Israel). Ásia/Pacífico: Anoushka Shankar (Índia), Dadawa (China), Debashish Bhattacharya (Índia) e Fat Freddy's Drop (Nova Zelândia). Europa: Camille (França), Lo’Jo (França), Mariza (Portugal) e Ojos de Brujo (Espanha). Revelação: Etran Finatawa (Niger), K’Naan (Somália), Nuru Kane (Senegal) e Sara Tavares (Portugal/Cabo Verde). Fusão: Aida Nadeem (Iraque/Dinamarca), Maurice El Medini & Robert Rodriguez (Argélia/Cuba), Ska Cubano (Reino Unido/Cuba/Jamaica) e Think of One (Bélgica/Brasil). Dança/Discoteca Global: Balkan Beat Box (Estados Unidos/Israel), Cheb I Sabbah (Argélia/Estados Unidos), Gotan Project (França/Argentina) e Mercan Dede (Turquia/Canadá).

29 outubro, 2006

Cromos Raízes e Antenas II


Na ressaca da WOMEX, em Sevilha (notas soltas sobre os concertos do festival ficam prometidas para os próximos dias), este blog continua hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagens (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo II.1 - Master Musicians of Jajouka



Circular, hipnótica, antiga, a música dos Master Musicians of Jajouka, das montanhas do norte de Marrocos, foi tema de análise por parte de escritores - Paul Bowles, Brion Gysin e William S. Burroughs (que deles disse serem uma «banda de rock'n'roll com quatro mil anos de existência») - antes de serem «mostrados» ao ocidente através de Brian Jones, guitarrista dos Rolling Stones, que editou o álbum «Brian Jones Presents The Pipes Of Pan At Jajouka» (1971). A partir daí têm editado regularmente até agora, inclusive um disco - «Master Musicians of Jajouka Featuring Bachir Attar» (2000) - em que experimentam cruzamentos da sua música com as electrónicas de Talvin Singh. Misto de música berbere e música árabe, os Masters Musicians of Jajouka usam como instrumentos primordiais a voz, percussões, flautas, a rhaita (gaita) e o guimbri (baixo acústico rectangular).


Cromo II.2 - Alan Lomax


O musicólogo e etnólogo norte-americano Alan Lomax (nascido a 31 de Janeiro de 1915; falecido a 19 de Julho de 2002) foi um dos mais importantes recolectores de música tradicional do século XX, tendo feito trabalho no terreno principalmente nos Estados Unidos, Ilhas Britânicas, Itália, Espanha e Caraíbas. Filho de John Lomax - que foi um dos pioneiros na recolha de canções tradicionais norte-americanas -, Alan seguiu os passos do pai e gravou milhares de temas musicais e entrevistas com músicos (Jelly Roll Morton, Leadbelly, Woody Guthrie...), tendo começado essa actividade com o registo de cantos de trabalhadores negros dos campos de algodão e de prisioneiros no Texas, Louisiana e Mississippi. Alan é também o autor de uma teoria de análise musical aplicada à música tradicional, «cantometrics», que ele desenvolveu a partir de 1959 em conjunto com o departamento de Antropologia da Universidade de Columbia.


Cromo II.3 - Hedningarna


Precursores de muitos dos projectos que cruzam a música tradicional com linguagens musicais mais recentes, o grupo sueco Hedningarna lançou em 1987 um explosivo cocktail que, ao longo dos anos, tem incluído música tradicional de várias regiões da Escandinávia (o grupo chegou a viver muito da criatividade de duas cantoras finlandesas e um cantor de yoik), rock e electrónicas. Construindo alguns dos seus instrumentos - réplicas de instrumentos antigos como a sanfona, moraharpa, nickelharpa ou gaitas-de-foles - e muitas vezes electrificando-os, os Hedningarna lançaram o seu primeiro álbum, homónimo, dois anos depois, e são considerados, mais que justamente!, o mais importante grupo folk da Escandinávia das últimas duas décadas. Outros álbuns aconselhados: «Kaksi!», «Trä» e «Karelia Visa».


Cromo II.4 - Didgeridoo


Inventado pelos aborígenes australianos, que o usam como instrumento de eleição para fins recreativos mas essencialmente em rituais religiosos, e agora adoptado por milhares de músicos em todo em mundo (nomedamente em inúmeras bandas rock e folk), o didgeridoo é um aerofone feito de madeira (maioritariamente de eucalipto), um tubo oco e comprido (entre um a dois metros de comprimento) que pode amplificar naturalmente a voz, que a transforma e que serve muitas vezes para criar drones (bordões) intermináveis. Há quem diga que é o instrumento de sopro mais antigo que se conhece, mas não há provas da veracidade desta afirmação embora estudos arqueológicos refiram a existência de didgeridoos desde há, pelo menos, mil e quinhentos anos.

24 outubro, 2006

«Rogue's Gallery» - 43 Canções no Baú do Morto e Uma Garrafa de Rum


Um dos melhores álbuns deste ano chega-nos através de uma ideia de Gore Verbinsky e Johnny Depp (pois, o realizador e a estrela d'«Os Piratas das Caraíbas»), com produção artística e musical do enorme Hal Willner (ele que é sempre o homem certo para os projectos arrojados e as grandes homenagens, sejam a Edgar Allan Poe, Nino Rota, Thelonious Monk ou Kurt Weill). O álbum chama-se «Rogue's Gallery», tem como sub-título «Pirate Ballads, Sea Songs & Chanteys» e inclui interpretações de muita da melhor gente que a folk e o rock têm para oferecer.

VÁRIOS
«ROGUE'S GALLERY»
Anti- Records

Se se quiser, «Rogue's Gallery» não é bem um disco. É mais um filme em que as cenas se sucedem sem cessar (parece um trava-línguas e é), com personagens míticas que incluem piratas da perna de pau e corsários enlouquecidos pelo brilho do ouro, marinheiros mirrados pelo escorbuto e as suas noivas deixadas num porto qualquer, capitães bêbados de rum e de sal, um Neptuno que faz soprar tempestades sobre os galeões e as sereias que seduzem os marujos prestes a naufragar, rapazes aventureiros em busca de fortuna e de amor. E um mapa do tesouro com um X brilhante lá no meio. Os actores?... Baby Gramps, Nick Cave, Bryan Ferry (a solo e num fabuloso dueto com Antony), Loudon Wainright III, Gavin Friday, Martin Carthy, Mary Margaret O'Hara, Jack Shit e Lou Reed (também com Antony a espreitar por trás) estão todos soberbos na interpretação destas canções trazidas pelo mar. E, lá pelo meio, ainda há muitas outras boas interpretações - embora não ao nível das referidas -, por Bono, Van Dyke Parks, Joseph Arthur, David Thomas, Teddy Thompson, Eliza Carthy, Lucinda Williams, Ed Harcourt e Stan Ridgway, entre outros. O álbum, repete-se, é fabuloso, não só na escolha destas canções antigas como na selecção do elenco (eu também meteria Tom Waits, Shane MacGowan e PJ Harvey ao barulho, que não estão neste álbum mas poderiam muito bem estar...) e nos ambientes e arranjos musicais que os rodeiam. Aqui, só Richard Thompson (surpreendentemente!), Akron/Family, Andrea Corr e Sting falham o X deste magnífico mapa. (8/10)

23 outubro, 2006

WOMEX - Esta Semana Em Sevilha



Se tudo correr bem, o final desta semana será passado em Sevilha, na WOMEX, feira que junta muitos artistas consagrados e emergentes da chamada world music e os mas importantes editores, agentes, managers, DJs, divulgadores e jornalistas desta área. De Portugal segue uma representação alargada, se bem que não haja nenhum concerto/showcase oficial agendado com artistas portugueses. Entre os concertos/showcases marcados contam-se actuações de vários nomes espanhóis - Banda de la María, Mártires Del Compás, Son De La Frontera, Electroputas, Guadiana, Los Patriarcas de la Rumba e Tomás San Miguel+Txalaparta - e de variadíssimos artistas e bandas de vários continentes: Adjágas (Noruega), Afel Bocoum & Alkibar (Mali), Aterciopelados (Colômbia), Aynur (Turquia), Boom Pam (Israel), Brina (Eslovénia), Calypso @ Dirty Jim's (Trinidad e Tobago), Darko Rundek & Cargo Orkestar (Croácia/França), El Tanbura (Egipto), Free Hole Negro (Cuba), Hamilton de Holanda (Brasil), Homayun Sakhi (Afeganistão/Estados Unidos), Juan Carlos Cáceres (Argentina/França), Kal (Sérvia), Kassaï Allstars (Congo), La Etruria Criminale Banda (Itália), Menwar (Ilhas Maurícias), Niyaz (Irão/Canadá/Estados Unidos), Nomo (Estados Unidos), Orange Blossom (Argélia/México/França), Petrona Martínez (Colômbia), Salsa Celtica (Reino Unido), Sergent Garcia (França), Tcheka (Cabo Verde), The Shin/Project «EgAri» (Geórgia), The Silk String Quartet (China/Reino Unido) e X Alfonso (Cuba). Os DJs que vão terminar as sempre longas noites da WOMEX são DJ Awal e DJ Click (ambos franceses) e Los Rumbers (Espanha). Mais informações sobre a WOMEX (que decorre de 25 a 29) podem ser encontradas aqui.

21 outubro, 2006

Cromos Raízes e Antenas I


Este blog inicia hoje a publicação da série «Cromos Raízes e Antenas», constituída por pequenas fichas sobre artistas, grupos, personagen (míticas ou reais), géneros, instrumentos musicais, editoras discográficas, divulgadores, filmes... Tudo isto sem ordem cronológica nem alfabética nem enciclopédica nem com hierarquia de importância nem sujeita a qualquer tipo de actualidade. É vagamente aleatória, randomizada, livre, à vontade do freguês (ou dos fregueses: os leitores deste blog estão todos convidados a enviar sugestões ou, melhor ainda!, as fichas completas de cromos para o espaço de comentários ou para o e-mail pires.ant@gmail.com - a «gerência» agradece; assim como agradece que venham daí acrescentos e correcções às várias entradas). As «carteirinhas» de cromos incluem sempre quatro exemplares, numerados e... coleccionáveis ;)


Cromo I.1 - Abraão



Pondo à prova a sua fé, Deus propôs a Abraão que sacrificasse o seu filho Isaac em holocausto. Abraão (aqui representado num quadro de Marc Chagall) obedeceu mas, quando se preparava para baixar a faca sobre Isaac, Deus compadeceu-se dele e propôs-lhe que, em vez do filho, sacrificasse antes um carneiro (Livro do Génesis, Cap. 22). Dos cornos desse animal, Abraão fez um instrumento musical - o shofar - que ainda hoje é um instrumento sagrado para os judeus, usado em boa parte das suas cerimónias religiosas como o Rosh Hashanah e o Yom Kippur. E o poder (sagrado) deste instrumento é tal, conta também o Antigo Testamento, que o sopro de muitos shofars, usado pelo exécito de Josué, derrubou as muralhas de Jericó, permitindo assim a conquista desta cidade.


Cromo I.2 - Real World


Nascida no seio da WOMAD, e igualmente dirigida por Peter Gabriel, a editora discográfica britânica Real World é, desde 1989, uma das mais activas no lançamento de álbuns de músicas do mundo, desde as mais tradicionais a vários cruzamentos da tradição com a modernidade. Do seu catálogo fazem parte nomes tão diversos quanto Nusrat Fateh Ali Khan ou os Afro Celt Sound System, Yunghen Lhamo ou as Varttina, Doudou N'Diaye Rose ou os Eyuphuro, Geoffrey Oryema ou Joseph Arthur, Sheila Chandra
ou o próprio Peter Gabriel. Com uma filosofia musical aberta, aventureira, muitas vezes visionária, a Real World tem também um excelente estúdio onde muitos dos seus artistas de todo o mundo se juntam para gravar durante uma semana. O resultado destas sessões está reunido em vários discos, nomedamente no editado recentemente - e fabuloso! - «Big Blue Ball».



Cromo I.3 - Uilleann Pipes


As uilleann pipes (também conhecidas como union pipes ou, em gaélico, phìob uilleann) são as gaitas-de-foles irlandesas, que se distinguem facilmente de muitas outras porque não precisam que o ar seja transmitido pela boca aos foles. Nas uilleann pipes - criadas no início do séc. XVIII - é o movimento do cotovelo («uillean» significa excatemente «cotovelo» em gaélico) que transmite o ar ao fole. E a lenda diz que, assim, os irlandeses ficam com a boca livre para cantar, fumar, beber whisky ou... beijar as raparigas. Intérpretes famosos de uilleann pipes são, entre muitos outros, Davy Spillane ou Paddy Moloney, o líder dos Chieftains.



Cromo I.4 - «Le Mystère des Voix Bulgares»


A génese de um dos maiores fenómenos de popularidade de músicas «locais» veio, em finais dos anos 80, de onde não se esperaria: a editora 4AD (dos Cocteau Twins, Dead Can Dance, Pixies...) lançou dois álbuns da série «Le Mystère des Voix Bulgares», que incluíam canções interpretadas pelo coro feminino da Rádio e Televisão Nacional da Bulgária - gravadas pelo etnomusicólogo Marcel Cellier - e o mundo descobriu, fascinado, as polifonias maravilhosas da tradição búlgara. De registo, fica ainda a curiosidade de que teria sido o vocalista dos Bauhaus, Peter Murphy, a mostrar uma cassete com essas gravações a Ivo Watts-Russell, patrão da editora. Depois disso, inúmeros grupos capitalizaram a designação «Mistério das Vozes Búlgaras», apresentando reportório semelhante ao ouvido nesses dois álbuns pioneiros. Um dos grupos mais aconselháveis desse lote é o colectivo Angelite.

20 outubro, 2006

Brigada Victor Jara Ceia em Almada


O novo álbum da Brigada Victor Jara, «Ceia Louca», é apresentado em concertos no Fórum Romeu Correia, em Almada, hoje (dia 20) e amanhã (dia 21). Nestes espectáculos, a Brigada (aqui em mais uma foto de Mário Pires, da Retorta) faz-se acompanhar por dois convidados especiais, a fadista Cristina Branco e Janita Salomé (que no álbum dão voz a «Embalo» e «Romance de D.Mariana», respectivamente). Outros cantores presentes em «Ceia Louca» - alguns deles completamente inesperados - são a vocalista dos Clã, Manuela Azevedo (que canta em mirandês o tradicional das cardadeiras «Tirióni»), o fadista Carlos do Carmo (noutro tradicional transmontano, «Rosinha»), Jorge Palma («Chamarrita Zagarateira»), o cantor açoriano Carlos Medeiros («Lenga-Lenga» e «A Vida do Caracol»), Vitorino («Li-la-ré»), Lena d'Água («Moda do Pastor»), Rita Marques («Meninas Vamos à Murta») e a vocalista oficial da Brigada, Catarina Moura (sozinha em «Durme» e com as suas companheiras das Segue-me À Capela em «Cantiga Bailada»). O álbum - que tem edição da Universal Music Portugal - inclui ainda um instrumental, «Arruada».

19 outubro, 2006

Acordeões à Solta em Torres Vedras


A cidade de Torres Vedras volta a acolher o Festival Internacional de Acordeões, este ano novamente com uma programação luxuosa e aberta a vários estilos e formações. Com actuações do mestre acordeonista, gaúcho do Brasil, Renato Borghetti (28 de Outubro, no Teatro-Cine), Danças e Folguedos de Sergipe/«Mestre Cheiroso e Seus Brincantes» (1 de Novembro, na Adega Cooperativa de Dois Portos), dos búlgaros Martin Lubenov & Jazzta Prasta Band (4 de Novembro, no Teatro-Cine), do fantástico quarteto belga - na foto - Dazibao (5 de Novembro, no Teatro-Cine) e do Trio de João Gentil (8 de Novembro, no Instituto da Vinha e do Vinho). O festival também inclui oficinas de formação musical (no Terminal Rodoviário de Torres Vedras, de 28 Outubro a 4 Novembro) e as Merendas do Acordeão em vários locais da cidade: café «A Brasileira», Bar de Origem Controlada, Cervejaria «O Gordo», Café Havaneza e Adega Típica «Manadinhas». Mais informações aqui.

18 outubro, 2006

José Peixoto - Para Além dos Madredeus


Agora que o futuro dos Madredeus está em aberto - a sua agência espanhola, Syntorama, anunciou o final do grupo e o início da carreira a solo de Teresa Salgueiro; Pedro Ayres Magalhães nega o fim mas confirma 2007 como «ano sabático» dedicado aos projectos individuais dos seus integrantes -, recupero aqui duas entrevistas com José Peixoto, o genial guitarrista dos Madredeus e o mais prolífico dos seus músicos, e com os seus dois companheiros nestas aventuras: o igualmente Madredeus Fernando Júdice (com José Peixoto, na foto) no projecto que deu origem ao álbum «Carinhoso» (2002) e a cantora Filipa Pais no duo que produziu «Estrela» (2004). Entre os dois ficou «Aceno» (2003) e, depois disso, o guitarrista também já nos ofereceu «Cacus», em parceria com o violinista Carlos Zíngaro (2005), e «Pele», em parceria com a cantora Maria João (2006).


CARINHOSO
UM CHORINHO (FELIZ)

Dentro de uma viagem podem coabitar muitas viagens. No caso destes dois músicos, o guitarrista José Peixoto e o baixista Fernando Júdice, as viagens dos Madredeus também lhes serviram para iniciar uma outra, rumo à música de Pixinguinha e de outros chorinhos brasileiros. No regresso a casa, há um disco, «Carinhoso», onde ao lado de vários instrumentais surgem três temas cantados (Maria João, Manuela Azevedo, dos Clã, e Luís Represas são as vozes presentes). Um disco de amor com final feliz.

Como é que dois músicos portugueses se apaixonam pela música de um compositor brasileiro?

Fernando Júdice - Isso acontece um bocado por acaso. E o factor «acaso» é importante na génese deste projecto. O que nós queríamos de início era alguma coisa que nos entretivesse nas nossas viagens, nos tempos livres. Nós vamos ocupando os tempos livres a tocar, nos quartos de hotel...

Não vão para os copos e coisas assim?

José Peixoto - Não, não. Se o fizéssemos não podíamos depois trabalhar de manhã.

F.J. - E temos famílias. A nossa vida é mais virada para o dia do que para a noite, senão quando chegamos a casa o choque é muito grande. E precisávamos de praticar nas guitarras... Depois de muito procurar, sem encontrar nada que nos agradasse, estávamos em S. Paulo, no Brasil, e o Zé apareceu com um livro de chorinhos. Tinha dois do Pixinguinha, mas o resto não era dele. Pegámos em duas músicas ao acaso e começámos a tocar. Um deles chama-se «Chorando em S.Paulo», o que fazia sentido, e imediatamente sentimos empatia com aquela música e que era uma boa matéria-prima. Aquilo dava-nos espaço para imaginar coisas e funcionava bem com os nossos dois instrumentos. No meio do livro estava o «Carinhoso», do Pixinguinha, e isso foi definitivo. O tema bateu de uma maneira! No dia seguinte voltámos à mesma loja e comprámos um livro só com coisas do Pixinguinha. Isto foi o início do processo.

J.P. - A revelação dessa música fez-nos procurar mais coisas dele. Não houve qualquer ideia prévia, do género «vamos tocar Pixinguinha».

Querem falar um pouco da importância do Pixinguinha no contexto da música brasileira? A obra dele, cá, não é muito conhecida...

J.P. - E nós também fomos constatando a sua importância à medida que íamos descobrindo a música dele. O Pixinguinha é uma figura incontornável na música brasileira, sendo considerado por muitos como o pai da música popular brasileira. Antes do Pixinguinha, a composição e orquestração eram muito importadas da Europa ou da América. E o Pixinguinha deu-lhe um carácter regional, brasileiro, que até aí não tinha. Há como que uma divisão temporal - Antes de Pixinguinha e Depois de Pixinguinha.

Pode dizer-se, então, que o Pixinguinha deu «brasileiridade» à música brasileira?

J.P. - Exacto. E ele conjugava esse talento de compositor e orquestrador com o de instrumentista. De tal maneira que influenciou definitivamente muitos outros músicos brasileiros nestas três áreas. Também era muito bom improvisador. Ele sintetizou o choro, a forma do choro, naquilo que ele se tornou, estando também na génese de vários movimentos musicais, como a bossa-nova. Todos foram beber ao Pixinguinha. O Hermeto Pascoal, o Egberto Gismonti... E até um compositor erudito como o Villa-Lobos dizia que o mestre dele era o Pixinguinha.

F.J. - O Villa-Lobos dizia que tinha sido formado na Universidade de Pixinguinha. Ele foi o primeiro brasileiro a levar a música brasileira para fora do Brasil. Com excelentes críticas em França - era para ficar a tocar um mês em Paris, ficou seis.

Vocês encontram algum ponto de contacto entre o chorinho e a música portuguesa, nomeadamente o fado?

F.J - Não, não me parece. Há muitas teorias sobre a génese do fado e há uma, especificamente, sobre as ligações do fado ao Brasil. Mas provavelmente o fado não tem uma origem, tem várias. E não há nenhuma teoria definitiva.

J.P. - Mas talvez essa ligação exista em termos emocionais. A saudade, a tristeza, o fado dos portugueses degredados no Brasil podem ter estado presentes na origem do chorão, que deu origem ao choro e ao chorinho. Só os nomes dizem tudo. Há quem defenda que o choro é uma música negra com uma melodia branca. Pode haver uma raiz comum...

F.J. - Mas se isso existe é dessa forma subliminar. Musicalmente não há uma ligação directa, nem uma derivação directa. A música vem da alma e, a esse nível, pode sempre haver ligações.

No álbum não surgem apenas temas do Pixinguinha. Há dois ou três de outros compositores...

J.P. -- Um é o «Chorando em S.Paulo», porque foi o primeiro que tocámos e se revelou uma música extraordinária. E o outro é o célebre «Tico Tico no Fubá», que apesar de não ser do Pixinguinha, ele gravou em dueto: o Pixinguinha no saxofone e o Lacerda, flautista.

Como é que vocês passaram de «estudos de técnica instrumental» - como referem os vossos press-releases - para uma obra de arte, que é o disco?

F.J. - Foi uma coisa que aconteceu com naturalidade. A nossa ideia não era fazer um disco, mas quando nos centrámos naquelas músicas, começámos a gravá-las, até para referência nossa, quando tínhamos o arranjo de cada música feito. E começámos a gostar daquilo que estávamos a fazer, para além de termos recebido opiniões entusiásticas de amigos nossos a quem nós mostrávamos aquilo. A ideia do disco foi crescendo gradualmente, derivando do resultado do nosso trabalho. A própria ideia dos cantores só surgiu quando já estávamos quase a começar a gravar o álbum...

Porque é que convidaram aqueles cantores e não outros para colaborar? A Maria João trabalhou muitas vezes com o José Peixoto; o Luís Represas e o Fernando Júdice foram colegas nos Trovante durante muitos anos. A Manuela Azevedo é que é uma surpresa.

J.P. - Foi fácil. Como eram três canções, eu escolhi um, o Fernando escolheu outro, e o terceiro escolhíamos os dois. E foram um bocado óbvias as nossas escolhas pessoais, por causa do passado comum da Maria João comigo - apesar de há dez anos não fazer nada com ela - e do Luís Represas com ele. Com a Maria João havia a certeza de que o resultado iria ser bom...

F.J. - E para mim era óbvio que só podia ser a voz do Luís que cabia naquela canção («Lamentos»). Sempre o ouvi cantar música brasileira, como segunda paixão, fora do Trovante.

J.P. - Entretanto, descobrimos que quer eu quer o Fernando éramos grandes admiradores da voz da Manuela Azevedo. Nós não a conhecíamos pessoalmente mas desafiámo-la e ela aceitou. E foi ela que decidiu que ia cantar a música («Carinhoso») em português de Portugal e não do Brasil, ao contrário dos outros dois que cantaram naturalmente em «brasileiro». Achámos um pouco estranho, mas ela fez o primeiro «take» e ficou - estava tão bom que não era preciso dizer mais nada.

Porque é que não convidaram a vossa colega de Madredeus, Teresa Salgueiro? E, já agora, o que é que os outros pensam disto? Acham bem? Acham mal?

F.J. - Não sei se acham bem ou mal, mas naturalmente acham bem.

J.P. - Acham bem, quanto mais não seja porque há um ano e meio que levam connosco nos camarins a tocar estas coisas (risos).

F.J. - A questão da Teresa... A Teresa é uma cantora extraordinária. E é uma pessoa com quem dá um prazer enorme ter a cantar ao lado. Mas isto foi uma coisa feita num contexto perfeitamente marginal ao nosso trabalho nos Madredeus. E quando se pôs a questão dos cantores, já muito tarde neste processo, todo este universo musical estava construído e definido. Quando começámos a falar em cantores, quisemos, quase naturalmente, puxar isto para um contexto exterior ao nosso universo normal de trabalho. Não evitámos a Teresa.

J.P. - Não há nenhuma obrigação, dentro dos Madredeus, de estarmos sempre a trabalhar uns com os outros. E uma das coisas mais gratificantes da actividade artística é podermos descobrir coisas novas e trabalhar com pessoas diferentes. Se temos o privilégio de trabalhar, quase diariamente, com a Teresa, não é uma rejeição não trabalharmos com ela numa coisa destas.

Apesar de já terem tocado com muita gente e passado por estilos diferentes, vocês têm os dois formação de jazz. Como é vocês se sentem num projecto com pauta escrita? Houve algum espaço para a improvisação neste trabalho?

J.P. - Houve espaço para a composição do arranjo. Improvisação não, porque até chegar àquela forma cristalizada já o Pixinguinha devia ter feito todas as improvisações possíveis. Nós tínhamos uma linha melódica e uma cifra, e não nos desviámos disso - tocámos exactamente o que lá estava -, mas com essa criatividade nos arranjos.

F.J. - Apesar de haver uma melodia escrita e uma cifra harmónica, podemos ter um espaço de manobra considerável, que é o tal espaço em que se constrói o arranjo; em que se pode seguir a harmonia que ali está mas também se pode alterar ligeiramente de acordo com a construção do arranjo que vai sendo construído. Tu ouves um disco genuíno de choros brasileiros, e o nosso não se parece nada com eles, porque a linguagem é outra, a instrumentação é outra, a nossa alma é outra. Aquilo surge na nossa cabeça de uma maneira particular.

O José Peixoto também é compositor, o Fernando Júdice - tanto quanto eu sei - não tanto. Porque é que avançaram para um disco de versões em vez de fazer um de originais?

J.P. - Porque os livros que nós comprámos já lá tinham a música escrita. Se estivessem em branco (risos)... Isso tem a ver com a primeira pergunta. Isto tem tudo a ver com o facto de querermos qualquer coisa com que nos entretêssemos a tocar. Nunca nos passou pela cabeça fazermos uma coisa de raiz, de originais. Não era esse o objectivo.

Como é que está a carreira a solo de José Peixoto?

J.P. - Está boa. Em princípio, vou gravar um novo álbum agora. E apesar de ser uma coisa marginal e com pouca visibilidade, enquanto eu tiver saúde vai continuar.

E haverá alguma vez um álbum de Fernando Júdice?

F.J. - Essa é uma questão que não se põe.

Vai haver continuidade para este projecto? Concertos? Um novo disco?

J.P. - Não sabemos. Assim como não pensávamos fazer um disco, também ainda não pensámos o que vai ser o futuro. Não há espectáculos pensados.

F.J. - Vai ser difícil fazermos espectáculos, até pelo tipo de ocupação que nós temos, com os Madredeus. E isto é uma coisa pequena, especial, com pouco reportório...

J.P. - Isto tem um carácter amador. A eventual profissionalização deste projecto iria mudar tudo, mas isso não está no nosso horizonte.



SINTETIZADOR
FILIPA PAIS/JOSÉ PEIXOTO

Trabalharam juntos na Lua Extravagante, cruzaram-se fugazmente no álbum Aceno, encontraram-se agora a tempo inteiro para um álbum completo: «Estrela».

«Estrela» é um álbum de canções compostas por José Peixoto (guitarrista dos Madredeus e dono de uma já considerável discografia a solo) que só precisavam de uma voz. E a escolha do músico recaiu em Filipa Pais (que foi da Lua Extravagante e editou dois álbuns a solo; nos últimos anos também envolvida em espectáculos do grupo de teatro O Bando). Diz Peixoto: «Conhecemo-nos nos concertos e na gravação do disco da Lua Extravagante [início dos anos 90]. E houve logo ali um entendimento que deu pistas para a vontade futura de fazermos qualquer coisa em conjunto. Essa vontade existiu sempre, mas o encontro foi sendo sucessivamente adiado... até que aconteceu», e acrescenta Filipa: «Voltámos a encontrar-nos para o álbum dele, "Aceno", em que canto dois temas... E no final do ano passado começámos a trabalhar neste álbum, "Estrela"».

Pergunto a Peixoto se existiu desde o início da composição destes temas a consciência de que estas seriam canções para uma voz e não instrumentais. Diz que sim: «Tenho logo a noção de quando uma peça é instrumental e quando não é. A própria estrutura melódica conduz-me à forma canção ou não». Já Filipa, diz ela, sentiu-se «muito confortável nestas canções. Aqui estou a cantar num registo mais grave, mais intimista, mas há muito tempo que queria experimentar este registo da minha voz». Pelo meio do processo surge também o poeta João Monge (autor de letras para os Trovante, Ala dos Namorados e Rio Grande), responsável pelos textos cantados em «Estrela» - Filipa conta, arrepiada com a coincidência, que só descobriu depois que vive na mesma casa em que Monge passou a sua infância e juventude.

Outros cúmplices activos no processo foram o produtor Mário Barreiros e os outros músicos participantes: Mário Delgado (guitarra, steel-guitar, sitar eléctrica...), Yuri Daniel (contrabaixo) e Quiné (percussões). Peixoto diz que «já tínhamos trabalhado com todos eles, mas nunca tínhamos estado todos juntos como estamos aqui. E já sabia que trabalhando com eles ia ter boas surpresas. São pessoas criativas, que acrescentaram coisas e optimizaram aquelas canções».

O álbum vive de universos sonoros bastante variados - da música tradicional ao psicadelismo, do jazz à pop, de ambientes de Norte de África ao Brasil... E não é nada fácil «encaixá-lo» em prateleiras ou géneros. José Peixoto diz que não se preocupa muito com isso, «mas é capaz de caber naquele grande saco, lato e abrangente, da world music. Se formos por exclusão de partes, isto não é jazz, não é música tradicional, não é música erudita...». Já Filipa diz, divertida, que chama a esta música «pop cota». E Peixoto acrescenta entre risos que o próximo disco dos dois será o «pós-cota». Outra promessa: as canções do álbum já foram «testadas» ao vivo em showcases nas FNACs e num festival em Castro Verde, mas haverá mais concertos assim que as agendas dos dois - ou dos cinco - o permitirem.

17 outubro, 2006

Gigi, Natacha Atlas e Brenda Fassie - World Pop Divas


Três espantosas cantoras. Duas africanas (Gigi Shibabaw - na foto - e Brenda Fassie), outra belga com raízes na África muçulmana, o Egipto (Natacha Atlas), e em Inglaterra. Uma que faleceu em 2004 (Brenda Fassie), as outras duas vivas e em actividade constante (Natacha Atlas, relembre-se, vem ao Porto para um concerto no dia 8 de Novembro). As três com carreiras riquíssimas na procura dos melhores cruzamentos entre as músicas tradicionais e a modernidade. Todas neste lote de discos imprescindíveis.


GIGI
«GOLD & WAX»
Palm Pictures

Primeiro, a relativa má notícia: «Gold & Wax» não é tão bom quanto o álbum do projecto Abyssinia Infinite, «Zion Roots», que Gigi (aka Ejigayehu Shibabaw) protagonizava ao lado de Bill Laswell. Não tem a mesma capacidade encantatória nem o mesmo espaço para o silêncio, a abstracção e a hipnose que esse álbum. Mas também é difícil, muito difícil, que algum disco o tenha depois do patamar de excelência que «Zion Roots» atingiu. Agora, as boas notícias: «Gold & Wax» é igualmente produzido por Bill Laswell e a mistura de rock, dub, algum jazz e electrónicas (aqui bastante presentes) com a música etíope, a música árabe, a música sefardita ou a música indiana, que Gigi e Laswell aqui mostram - repete-se, embora não estando ao nível de «Zion Roots» ou sequer do álbum anterior «Gigi» - é suficientemente excitante para fazer deste um dos melhores discos «world» deste ano. Além disso, Gigi continua a ter uma voz maravilhosa, que voa como uma ave-do-paraíso em temas como «Jerusalem», «Salam», «Utopia» (o único cantado em inglês), «Gomelayeye», «Hulu-Dane» ou o lindíssimo «Acha». Depois, o lote de músicos neste álbum é luxuoso: para além de Bill Laswell estão aqui Nils Petter Molvaer, Foday Musa Suso, Karsh Kale, Bernie Worrell e Ustad Sultan Khan, entre muitos outros. Gigi, etíope sediada nos Estados Unidos, é neste momento, provavelmente, o melhor exemplo de que é possível casar o antigo e o actual, o tradicional e as novas tecnologias, uma alma enraizada no mais profundo da Terra e umas antenas bem atentas a tudo à volta. (8/10)


NATACHA ATLAS
«MISH MAOUL»
Mantra Recordings

Em sentido contrário a «Gold & Wax», de Gigi, está «Mish Maoul», o novo álbum de Natacha Atlas. Não na qualidade musical, que é elevadíssima, mas porque Natacha Atlas está neste álbum num registo muito mais acústico do que é normal nela (tanto a solo como nos tempos em que fazia parte dos Transglobal Underground - e isto apesar de em «Mish Maoul» o dedo da sua antiga banda continuar presente através dos ex-companheiros Count Dubulah e Neil Sparkes, que produziram alguns temas). No novo álbum ainda há electrónicas e programações, sim, mas há um muito, muitíssimo maior, peso de instrumentos acústicos a envolver a sua voz, ainda e sempre uma voz fabulosa em maleabilidade e em riqueza tímbrica. Neste álbum ouvem-se, essencialmente, guitarras acústicas, piano, acordeão, alaúde, percussões árabes, ney, kanun... Mas o mais interessante é que, apesar de os instrumentos acústicos estarem em maioria, a linguagem musical de Natacha Atlas continua lançada para um futuro-mais-que-perfeito em que todas as músicas terão lugar. A música árabe está lá, sempre e bastante presente, a servir de cimento a tudo o resto, mas há muitas outras músicas lançadas para a betoneira: o hip-hop (no fantástico «Feen» e na voz do rapper libanês Clotaire K, em «La Lil Khouf», que também conta com a colaboração da cantora argelina Sofiane Saidi), o gnawa e a música tuaregue (em «Hayati Inta»), a bossa-nova (em «Ghanwah Bossanova» - o título não engana - e em «Bab El Janna», que termina... em português), uma pop fresquíssima (em «Bathaddak», com Princess Julianna num flow irresistível) ou o experimentalismo praticamente inclassificável de «Haram Aylek». «Mish Maoul» é outro muito bom exemplo de que há mundos (musicais e outros) que, em vez de colidir, podem coabitar e mesclar-se em perfeita harmonia. (8/10)


BRENDA FASSIE
«GREATEST HITS»
EMI

Se se não conhecer Brenda Fassie, basta ouvir o primeiro tema desta colectânea, o hit pan-africano «Vul'indlela», para se ficar fascinado com a voz e a música da cantora sul-africana: uma mistura brilhante de qualquer coisa parecida com o euro-disco com a música zulu, coroada com uma voz aberta, luminosa, belíssima. E o resto das canções presentes em «Greatest Hits» (com o sub-título «The Queen of African Pop - 1964-2004», sendo o ano de 1964 o do seu nascimento e não o de início de carreira) é a continuação, lógica, da descoberta de uma personagem incontornável da música africana e da fusão de elementos locais com inúmeras linguagens exteriores: a soul, o funk, o rock, o disco-sound, o tecno, o acid-jazz... Brenda Fassie - falecida em 2004, com apenas quarenta anos - foi uma heroína da música sul-africana. Diva pop, com um sucesso de vendas enorme - a revista «Time» chamou-lhe «A Madonna dos Guetos de Joanesburgo» (nascida na Cidade do Cabo, Brenda mudou-se para Joanesburgo na adolescência) - e com uma vida recheada de pormenores trágicos - depressões, tentativas de suicídio, dependência da cocaína... -, isso não a impediu de se ligar a inúmeras causas sociais e políticas (o Partido do Congresso Nacional Africano, de Nelson Mandela, usou «Vul'indlela» como hino nas eleições de 1999) e de lançar as bases de muita da modernidade da música sul-africana, tendo sido uma das pioneiras do kwaito (um riquíssimo género híbrido de que falarei proximamente neste blog). O «Greatest Hits» de Brenda Fassie é outro bom exemplo de como o tradicional (que está aqui bem presente em alguns temas, como em «Sum'bulala» ou nas maravilhosas polifonias vocais de «Black President» e de outros temas) pode andar de mãos dadas com outras músicas para, assim, criar novos e brilhantes sons. (7/10)

16 outubro, 2006

Final Fantasy - A Folk e Tudo o Resto...


Já o tinha visto com os Arcade Fire (em Paredes de Coura, num maravilhoso concerto rock - o melhor dos concertos rock, ao lado de White Stripes, dos Animal Collective, dos Liars... e de pouco mais neste rock, deste rock, de que a música rock é agora feita...) e vi-o hoje, agora, há meia-hora, no Jardim do Tabaco, em Lisboa, com uma japonesinha (?) a disparar imagens em acetatos, animação feita no momento, amor maior de um amor imenso (beijos, cenas medievais, os atlantes, os pássaros de Alfred Hitchcock, uma «estranha fruta» pendurada em árvores e mais beijos e os olhos de Krishna e as galáxias todas, distantes...).

E ele, o canadiano Final Fantasy (como é que ele se chama mesmo?...) a dar-nos cantos e sais e mais e cai-cais e ais, só ais, de violino, saiiiis, maiiiis, cai-caiiis, aiiiis, e pianadas loucas, tudo passado pelo crivo reverberante do sampler, com mazurkas e valsas e polkas... e Bach e Mahler e Mozart e Shostakovich e, também, com Mariah Carey (sim, sim!, Mariah Carey!!!) e os punks Destroyer e a neo-folk, harpista, duendezinha Joanna Newsom a tiracolo, ali mesmo ao lado (sem lá estar, mesmo) e com os companheiros todos dos Arcade Fire (sem lá estarem mesmo, nem mesmo a menina violinista, a outra violinista, do outro cai-cai), se calhar só para mostrar que a música é só uma e que não há diferenças nem barreiras nem escolhos entre o que quer que seja... Foi tão bonito este concerto!

15 outubro, 2006

Sérgio Godinho - Com Novo Álbum e em Concertos


Seis anos depois do álbum de originais «Lupa» e três desde o álbum de duetos «O Irmão do Meio», Sérgio Godinho está de regresso aos discos com «Ligação Directa», que tem edição marcada para dia 23 deste mês. O álbum inclui dez temas, oito compostos por Godinho, um por Hélder Gonçalves (dos Clã, grupo com o qual Godinho gravou o álbum «Afinidades») e outro por Nuno Rafael, que também foi o produtor e director musical deste novo disco. O primeiro single retirado de «Ligação Directa» é «Às Vezes o Amor».

Os concertos de apresentação do álbum, «Sérgio Godinho (em) Ligação Directa», decorrem dia 30 de Novembro no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, e dia 7 de Dezembro na Casa da Música, Porto.

13 outubro, 2006

Festivais - O Gesto Orelhudo, Entrelaços e Fest-i-Ball


São raros os festivais world/trad/folk/etc,etc fora da época alta, mas ainda acontecem por aí alguns, e bastante interessantes. Como o O Gesto Orelhudo em Águeda, o Entrelaços em Castelo Branco e o Fest-i-Ball em Lisboa.

O festival de música, teatro e bailado O Gesto Orelhudo, organizado pela d'Orfeu, começa hoje em Águeda e decorre até dia 21 deste mês. Esta quinta edição inicia-se hoje à noite com um espectáculo de música e teatro, «Charanga», pela Companhia Circolando e continua com concerto dos sintrenses Kumpa'nia Al-gazarra. E o festival segue com um concerto do açoriano José Medeiros e a «extravagância» dos holandeses «musicómicos» Slampampers, dia 14; teatro pelo suiço Oskar, dia 15; teatro pelo duo Descalças e concerto dos almadenses multinacionais O'QueStrada, dia 16; outra sessão das Descalças e teatro por um trio de actores do Chapitô, dia 17; Descalças (em dose dupla, teatral e musical) e mímica pelo trio ESTE - Estação Teatral, dia 18; bailado pela Companhia Paulo Ribeiro e canções pelo Trigo Limpo, dia 19; música e humor pelo belga Bernard Massuir e concerto dos galegos Marful, dia 20; e, a encerrar, um concerto cómico pelos italianos e outro pelos Toques do Caramulo, dia 21. Mais informações aqui.

Por sua vez, o Entrelaços 2006 - VII Festival Internacional de Música Tradicional de Castelo Branco começa amanhã e ocupará três fins-de-semana consecutivos. O festival, que decorre no Cine-Teatro Avenida, inclui concertos da Orquestra de Harmónicas de Ponte-de-Sôr e dos portuenses Lumen, amanhã, dia 14; do grupo de jazz Comcordas e dos festivos portuenses Mu (na foto), dia 21; e da Orquestra Típica Albicastrense - Musicalbi, no dia 28. Mais informações aqui.

E no Teatro Ibérico, em Lisboa, decorre de 27 a 29 deste mês o Fest-i-Ball, ponto de encontro dos cultores das danças tradicionais de todo o mundo. E, para além dos workshops de danças (valsas, mazurkas, polskas, tradicionais portuguesas...) durante a tarde também haverá concertos à noite. Com os Discantus, Fol&ar e Stéphane Delicq (dia 27); Pascal Seixas, Roncos do Diabo e Stéphane Delicq (dia 28); e Alfa Arroba (este ao fim da tarde, dia 29). Mais informações aqui.

12 outubro, 2006

Balkan Beat Box, Charanga Cakewalk e Toubab Krewe - F de Falso


Segundo os sábios ensinamentos de Orson Welles no filme «F Is Fake» (ensinamentos repegados no último álbum dos Houdini Blues), muitas vezes aquilo que parece não o é, mesmo que o eco de uma realidade qualquer seja muito parecido com a realidade ela mesmo e, por vezes, seja ainda mais real que o real. Mas o F de que se fala aqui - a propósito de álbuns dos projectos Balkan Beat Box (na foto), Charanga Cakewalk e Toubab Krewe - é de Falso, sim, mas também de Festa, de Folia, de Fusão, de Felicidade e de... Fãs.

BALKAN BEAT BOX
«BALKAN BEAT BOX»
Essay Recordings

Os Balkan Beat Box são dois israelitas radicados há muito em Nova Iorque, Ori Kaplan e Tamir Muskat, que com a ajuda de mais um punhados de excelentes músicos fazem neste seu álbum de estreia uma estranha e excitante fusão de música dos... Balcãs (estão lá as secções de metais típicas da música cigana do leste europeu), sim - o nome da banda não engana muito, apesar de tudo -, mas onde há muitas outras coisas metidas a este barulho bom: beats tecno, trance, hip-hop, rock e funk qb, ska, dub, klezmer, um cheiro «misterioso» a vozes búlgaras (em «Bulgarian Chicks»), flamenco, música mandinga, música árabe, turca e gnawa (esta no fabuloso «Hassan's Mimuna»). E sem deixar até de fazer apelos à paz e à concórdia entre os povos (em «La Bush Resistance»). E, sempre, com uma enorme fluência orgânica entre as várias componentes deste som. Devem ser excelentes ao vivo. O F é de Falso, mas é também de Fanfarras. (8/10)


CHARANGA CAKEWALK
«CHICANO ZEN»
Triloka/Artemis Records

Charanga Cakewalk é o projecto de um texano de origem mexicana, Michael Ramos (teclista e acordeonista de John Mellencamp, Paul Simon, The Bodeans e The Rembrandts), que se estreou em disco sob esta designação com «Loteria de La Cumbia Lounge» e lançou há alguns meses o segundo álbum, «Chicano Zen». Um álbum que faz por vezes lembrar Esquivel, no sentido de adaptar músicas tradicionais latino-americanas (principalmente mexicanas) a um cocktail dançante e, usemos um palavrão ou dois, obviamente agradável e simpático. Um Esquivel moderno e actual. Mas, outras vezes, está muito perto da tradição (como na deliciosa «La Miga Hormiga», «Amor Profundo», «No Soy Feliz»...) e aí sente-se um apego e uma paixão enorme pelas raízes. Na receita entram, em doses variadas, exotica, lounge, chill-out, rancheras, mariachis, boleros, cumbias, polkas, merengues e quase tudo faz, quase sempre, sentido. No lote de vozes convocadas para este álbum estão as de Lila Downs, Ruben «El Gato Negro» Ramos, Patty Griffin, Martha Gonzalez (dos Quetzal) e Davíd Garza. O F é de Falso, mas é também de Fascinação. (7/10)


TOUBAB KREWE
«TOUBAB KREWE»
Upstream Records

Ouve-se e, por vezes, muitas vezes, não se acredita no que se ouve: os Toubab Krewe são um grupo norte-americano, formado por cinco músicos brancos, mas a música que fazem tem como base a música mandinga e parece, parece mesmo!, mandinga muitas vezes. Andam por aqui koras, ngonis e percussões da África Ocidental à mistura com guitarras eléctricas, baixo, bateria. E o resultado dos ensinamentos colhidos em numerosas viagens a África e - certamente - na obra de Ali Farka Touré, Toumani Diabaté ou Ba Cissoko encaixam como uma luva nas outras influências que o grupo expõe com humildade: os blues, o hard-rock (com os Led Zeppelin, muito naturalmente, à cabeça), o prog, a country, o reggae, a surf music, a música cubana... E tudo isto feito com um amor e um talento inacreditáveis. O quinteto foi formado apenas em 2005, este é o primeiro álbum dos Toubab Krewe, mas a coerência e inventividade destes rapazes pressuporia que eles andam a fazer isto há muito, muito mais, tempo. Que o façam, pelo menos, por muito mais... porque aqui o F é de Falso, mas é também de Futuro. (8/10)

11 outubro, 2006

Últimos Nómadas do Rajastão na Casa da Música


A origem remota dos ciganos em diáspora desde há séculos pode ser encontrada numa zona da Índia, o Rajastão, onde ainda habitam grupos de nómadas que conservam quase intacta a sua cultura ancestral. E é a sua arte - aqui representada pelos Last Nomads of Rajasthan (poetas, bailarinos e bailarinas, acrobatas, músicos...) - que se pode ficar a conhecer na Casa da Música, Porto, dia 26 de Outubro. Com um presente adicional: os músicos presentes em palco pertencem ao grupo Divana, cujo líder Gazi Khan Barna participou em «Latcho Drom» (o filme de Tony Gatlif que conta a viagem da música cigana desde a Índia até Espanha, passando pelo Egipto, a Roménia e a Turquia)e colaborou com o mestra da sitar Ravi Shankar e o maestro Yehudi Menuhin no espectáculo «From Sitar To Guitar» .

Entretanto, o concerto de Natacha Atlas no mesmo local foi remarcado para dia 8 de Novembro. Mais informações sobre estes e outros espectáculos na Casa da Música, aqui.

10 outubro, 2006

Waldemar Bastos - Paz, Pão, Amor


Um dos melhores cantores e compositores angolanos da actualidade - ia escrever «o melhor», e só não o escrevo porque isto é sempre relativo... -, Waldemar Bastos, editou no início deste ano o seu álbum «Renascence» em Portugal. Aqui recupero a entrevista com ele, a propósito desse álbum, feita em Janeiro.


WALDEMAR BASTOS
CANTO UNIVERSAL

Um ano depois de ter sido editado na Holanda (e noutros países), o novo álbum de Waldemar Bastos, «Renascence», chega agora ao mercado português. Um álbum em que o compositor, cantor e músico angolano reflecte a nova realidade do seu país - a Paz – e um som cada vez mais universal.

O seu primeiro álbum, «Estamos Juntos», foi gravado no Brasil. «Angola Minha Namorada» e «Pitanga Madura» foram gravados em Portugal. «Pretaluz» foi gravado em Nova Iorque (com produção de Arto Lindsay) e editado pela Luaka Bop, de David Byrne. «Renascence» é editado pela holandesa World Connection. Não são muitas mudanças para uma carreira só?

Não. São mais as contingências da vida. Não acho que isso me tenha prejudicado, antes pelo contrário. Tenho feito os discos que gosto de fazer. Também não me preocupo muito com essa noção de «carreira». Estou mais preocupado com o que dou às pessoas... Saí do Brasil porque o Brasil não estava aberto a músicas de outras proveniências. Em Portugal, a EMI-VC não soube posicionar os meus discos no mercado internacional... Depois, o David Byrne convidou-me a gravar para a Luaka Bop e estou-lhe muito agradecido por isso. Agora estou na World Connection, em que o presidente da companhia fala directamente comigo, ao telefone. Há uma ligação mais directa.

Pode dizer-se que o seu novo álbum, «Renascence», é mais alegre, luminoso e aberto do que os anteriores? E que isso se deve ao facto de Angola ter, finalmente, encontrado o caminho da paz?

Sem dúvida. Todos os angolanos sofriam com a guerra. Era impossível, numa situação daquelas, abstrair-me do que se passava no meu país. Tenho cerca de 50 anos e a guerra em Angola [primeiro, a guerra colonial; depois a guerra civil] esteve presente em quase todos eles. E quando vejo a paz, porque se vê no rosto das pessoas, isso despoleta um disco com estas características.

Voltou a Angola para o grande concerto, em 2003, que celebrou o fim da guerra em Angola (num espectáculo em que também participaram Jimmy Cliff, Youssou N’Dour, Roberto Carlos...). É escusado perguntar-lhe se foi um momento especial...

Foi, sem dúvida, especial. Eu não ia à minha terra, havia coisas que me limitavam. E chegar à minha terra em liberdade, em paz, cantar e ser aplaudido e acarinhado; tudo isso me fez ficar comovido e feliz.

Sente que a paz veio para ficar em Angola?... Pergunto isto porque, a olhos exteriores, parece que bastou a morte de um homem (Jonas Savimbi) para se chegar à paz...

A paz é uma realidade que não se vai alterar. E não acho que tenha sido por isso [a morte de Savimbi]... Havia era um cansaço muito grande. E houve um momento mágico, espiritual, que determinou que a paz se fizesse. É um lado que nos ultrapassa, talvez de dimensão divina.

Em 2000 participou no concerto «Don’t Forget Africa», organizado pela UNESCO e no projecto «Zero Landmine», a convite de Ryuichi Sakamoto. É impossível separar o Waldemar Bastos músico, cantor e compositor do homem politicamente empenhado que também é?

Não me considero um homem político, mas sim preocupado com a sociedade. E um artista que tenta dar o seu melhor para o desnevolvimento do seu país, do seu continente e do mundo em geral. Não faço música que se possa considerar política. Faço música enquanto arte. Mas o artista tem obrigações do ponto de vista social. E não posso ficar impávido e sereno perante o que se passa à minha volta. O primeiro disco em que participei que já atingiu a marca de disco de platina é o «Zero Landmine», que já vendeu dois milhões de exemplares no Japão e o dinheiro angariado já serviu para desminar campos em Moçambique e no Vietname.

Voltando ao novo álbum: nele participam músicos de vários países africanos, portugueses, turcos... O que é que procurou em «escolas» tão diferentes?

Não procurei. Aconteceu assim naturalmente. Tenho músicos na minha banda de nacionalidades muito diferentes, mas com «feelings» que encaixam. A secção de cordas é turca porque achei que os violinos deles ficavam bonitos ali. Mas foi intencional fazer aquele jogo de guitarras, com guitarristas que vêm de várias zonas de África (Angola, Guiné, Zaire). E essas pontes entre vários estilos musicais sempre aconteceram comigo. Desde quando era jovem e tinha uma banda que tocava de tudo (fandangos, tangos, merengues...). Sempre gostei de música africana mas também de músicas de outras zonas do mundo e de artistas como os Shadows, Jimi Hendrix, Booker T & The MG’s, Led Zeppelin ou Chicago. Às vezes, o colonizado fica com uma cultura mais rica porque tem a sua e ainda absorve a dos outros...

É curioso porque, neste álbum, as suas letras não falam apenas da «paz» ou da situação angolana (apesar de haver um tema chamado «Paz Pão e Amor»), mas também, e ainda mais, das coisas do dia-a-dia...

Porque às vezes é ainda mais importante falar de outras coisas. Por exemplo, na minha canção «Dongo» falo de um pescador e do seu barco [o dongo], de modo a que mais gente conheça esta forma de pesca ancestral...

09 outubro, 2006

Fados e Phados de Outono


O fado - e os seus vários caminhos - invade o calendário de espectáculos deste Outono em Lisboa, Porto e outras cidades com concertos imperdíveis de Lula Pena (na foto), A Naifa, Cristina Branco e Aldina Duarte...

Lula Pena - autora de um ovni da música portuguesa, o álbum «Phados», no já longínquo ano de 1998 - dá um raro concerto em Lisboa, na ZDB, sábado, dia 14 de Outubro. E dela podem esperar-se fado, música brasileira e cabo-verdiana, música tradicional portuguesa, aproximações ao Norte de África; sempre apresentados de uma maneira inesperada e hiper-personalizada... Desde há alguns anos que Lula Pena está a trabalhar num novo álbum, algures no Alentejo. Talvez no sábado se descubra que outro ovni vem aí...

Cristina Branco homenageia Amália Rodrigues no espectáculo «21 Gramas» - baseado na ideia ou crença ou eventual verdade científica de que o corpo perde 21 gramas no momento da morte e que será esse o peso da alma - em concertos no Porto (Casa da Música, dia 19 de Outubro) e Lisboa (Centro Cultural de Belém, dia 25 de Novembro). E é a alma de Amália que Cristina Branco «encarna» neste espectáculo em que o reportório é exclusivamente baseado em temas cantados originalmente por Amália Rodrigues. No próximo ano, Cristina Branco irá à procura de outra alma, a de José Afonso.

Por sua vez, Aldina Duarte recupera o espectáculo «Crua», que tem concepção e direcção cénica do encenador Jorge Silva Melo, e apresenta-o, em Novembro, na Culturgest, Lisboa (dia 17) e na Casa da Música, Porto (dia 19) e, em Dezembro, no Teatro Viriato, em Viseu (dia 15).

Por último, o melhor projecto de sempre de re-actualização (e também re-ritualização) do fado, A Naifa, faz um apanhado de canções dos seus dois álbuns - «Canções Subterrâneas» e «3 Minutos Antes De A Maré Encher» - para o espectáculo global «As Canções d'A Naifa», que sobe à cena em Dezembro, dia 1 no Teatro Maria Matos (Lisboa), dia 6 no Teatro Aveirense (Aveiro), dia 7 no Teatro Circo (Braga) e dia 9 no Teatro Municipal de Faro. Imperdível.

07 outubro, 2006

Funk, Disco e Rock Latinos dos Anos 70 - Revolución!


O excelente artigo de Mário Lopes, no «Y» de ontem, sobre Sly & The Family Stone e sobre o funk como expressão das reivindicações negras nos Estados Unidos, fez-me recuperar dois discos mais ou menos recentes sobre um movimento paralelo, se bem que com muito menor exposição pública: o rock chicano e o funk e disco-sound latinos (mesmo que feito em França ou na Bélgica!) da década de 70. Um bom cheirinhos disto tudo está nestas duas colectâneas de que aqui se fala - «Revolucion - The Chicano's Spirit» e «Latin Funk Flavas» -, que agrupam nomes como El Chicano, Sapo, Azteca, Tierra, Flash & The Dinamics, Massada, Candido, Kongas ou Joe Bataan (na foto).


VÁRIOS
«REVOLUCION - THE CHICANO'S SPIRIT»
Follow Me Records

Muitas vezes o facto é esquecido, mas a verdade é que um dos primeiros heróis do rock'n'roll era de origem mexicana: Ritchie Valens, o jovem cantor de «La Bamba», morto no mesmo acidente de aviação onde também pereceria Buddy Holly. E que um dos vencedores absolutos de Woodstock tinha também sangue mexicano: Carlos Santana. Quem não o esqueceu foi a geração de bandas que despontou imediatamente a seguir, nos Estados Unidos mas nunca esquecendo a raiz mexicana, latina, da sua música, e a ela juntando, muitas vezes, as características de reivindicação política e de identidade própria que também caracterizavam o funk (maioritariamente) negro e até boa parte do rock (maioritariamente) branco da altura. «Revolucion - The Chicano's Spirit» agrupa gravações de bandas de imigrantes mexicanos das grandes metrópoles californianas (Los Angeles e San Francisco), nascidas nos guetos latinos (os «barrios»). Nele encontram-se temas de grupos e artistas bastante representativos do «género»: Coke Escovedo, El Chicano, Juan Carlos Caceres, Tierra, Malo, Sapo, Massada... E os temas, cantados em inglês e espanhol, têm ecos de salsa, de boogaloo, de rumbas e de formas musicais mexicanas mas há, aqui, essencialmente, rock, funk, psicadelismo, blues revistos pelos Doors em contexto mariachi, ou referências óbvias ao mix «afro-latino» de Carlos Santana e várias tentativas (umas mais bem conseguidas, outras menos) de emular a sua guitarra eléctrica. Mas em «Mazatlan», dos Azteca - o melhor tema da colectânea -, há blues, funk, soul, jazz de fusão, psicadelismo e latinismo q.b. para poder ser um clássico ao nível dos de um Jimi Hendrix, de uns Doors ou de uns Jefferson Airplane... (7/10)


VÁRIOS
«LATIN FUNK FLAVAS»
Salsoul/Bethlehem

Com os Tierra (também presentes em «Revolucion...») como elo de ligação entre estas duas colectâneas, «Latin Funk Flavas» - da editora norte-americana Salsoul (o nome não é inocente: a sílaba «sal» vem de... salsa, enquanto «soul» não é preciso explicar...) - faz um apanhado de temas antigos da editora, lançados nos anos 70, quando o funk e o disco-sound reinavam nas discotecas. E a compilação é um desfile inacreditável de canções festivas e absolutamente dançáveis (aqui não há intervenção política) que fazem a ponte perfeita entre esses ritmos norte-americanos e ritmos vindos de mais a sul, sem complexos nem barreiras: salsas, sambas, rumbas, mambos, cha-cha-chas (e experimentalismos e fusionismos entre todos estes géneros)... No rol estão o histórico afro-filipino de Nova Iorque Joe Bataan (um dos primeiros campeões de vendas da Salsoul, aqui em três temas, um deles uma versão de Gil Scott-Heron), o percussionista Candido, os misteriosos District of Columbia, os espantosos franceses Kongas (com dois temas fresquíssimos e completamente surpreendentes, «Anikana-O» e «Kongas Fun»), os belgas Chocolat's (eles e os Kongas parecem anunciar, com alguns anos de avanço, vários caminhos do pós-punk nova-iorquino!), Gary Criss (com um tema, «Rio de Janeiro», que está entre Sérgio Mendes, a banda-sonora do «Shaft» e algo de deliciosamente foleiro), The Anvil Band, Jimmy Castor, os «chicanos» Tierra (aqui com um irresistível «Baila, Simon») e The Salsoul Orchestra (com o escaldante «Ritzy Mambo»). (8/10)

06 outubro, 2006

Amália Rodrigues (23 de Julho de 1920 - 6 de Outubro de 1999)


Amália Rodrigues morreu há sete anos. E, indo ao fundo da nossa memória da cantadeira, nenhuma canção por ela cantada (nem mesmo «Amália», nem mesmo «Estranha Forma de Vida», nem mesmo «Com Que Voz») poderia resumir melhor a sua arte do que esta que aqui deixo. Vénia, respeito e saudade.


«Foi Deus»
(Roberto Gomes)

Não sei, não sabe ninguém
Por que canto o fado
Neste tom magoado
De dor e de pranto
E neste tormento
Todo o sofrimento
Eu sinto que a alma
Cá dentro se acalma
Nos versos que canto

Foi Deus
Que deu luz aos olhos
Perfumou as rosas
Deu oiro ao sol
E prata ao luar
Foi Deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
E pôs as estrelas no céu
E fez o espaço sem fim
Deu o luto às andorinhas
Ai, e deu-me esta voz a mim

Se canto
Não sei o que canto
Misto de ventura
Saudade, ternura
E talvez amor
Mas sei que cantando
Sinto o mesmo quando
Se tem um desgosto
E o pranto no rosto
Nos deixa melhor

Foi Deus
Que deu voz ao vento
Luz ao firmamento
E deu o azul às ondas do mar
Foi Deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
Fez poeta o rouxinol
Pôs no campo o alecrim
Deu as flores à Primavera
Ai!, e deu-me esta voz a mim

04 outubro, 2006

Danças Ocultas - A Alma e Os Foles que Ela Sopra


O álbum «Pulsar», do extraordinário quarteto de concertinas Danças Ocultas, originalmente editado em 2004, está a ser reeditado com dois temas bónus registados ao vivo - «Queda d'Água», gravado no Festival Sons em Trânsito, Aveiro, em 2005, e «Moda Assim ao Lado», gravado no Fórum Lisboa, em 2004. A propósito da reedição, aqui ficam dois textos publicados há dois anos no BLITZ: a entrevista que tem como mote o álbum «Pulsar» e a crítica a esse disco.


DANÇAS OCULTAS
O PRAZER DA VIAGEM

«Pulsar», o novo álbum dos Danças Ocultas, descobre novos caminhos para a música do quarteto. Caminhos em que se cruzam outros companheiros de(sta) viagem. Uma viagem, por vezes, com (ou por) paragens inesperadas.

Seis anos depois de «Ar» e oito depois de «Danças Ocultas», o quarteto de Artur Fernandes, Filipe Cal, Filipe Ricardo e Francisco Miguel lança o seu álbum mais aguardado (foi muito tempo de espera e muita coisa a acontecer sem que acontecesse um... disco) e mais - pode usar-se a palavra neste contexto - inesperado (pelas surpresas que traz dentro). Seis anos intensos, de mudança, de evolução, de actuações aqui e ali (em Portugal e no estrangeiro), de composições para coreografias, de um «Alento» diferente dado por um livro... Nesta entrevista, Artur Fernandes ajuda a revelar o que estava oculto.

Os dois primeiros álbuns do grupo foram editados pela EMI. O novo é lançado pela Magic Music, com distribuição da CNM (Companhia Nacional de Música). Artur Fernandes explica porque saíram da multinacional: «Foi uma questão de eficácia. Desde 1998 que tocamos, com regularidade, na Europa central - Bélgica, Alemanha, Holanda, França. E, menos, em Itália, Inglaterra e Espanha. E foi sempre muito difícil ter licenciamento internacional nesses mercados. Fez-se uma edição em França, em 2002, mas foi um processo muito lento; demorou um ano. E andar a tocar lá fora sem o apoio de um disco é muito ingrato. Sentimos, portanto, essa necessidade de agilizar o mais possível a possibilidade de licenciamento internacional, o que é muito mais fácil através de uma editora independente do que através da EMI. A nossa saída da EMI foi cordial...». Neste momento, aliás, há «contactos adiantados com editoras em Espanha e França para a edição do novo disco nesses territórios».

Curiosamente, «Pulsar» - pelos meios de gravação que envolveu, pelos convidados convocados a aparecer, etc... - parece mais uma produção saída de uma multinacional do que de uma edição independente. E, diz Fernandes, «esse esforço de produção justifica também a demora na saída do disco...». Ao longo destes seis anos, «fomos compondo material, tivemos muitos espectáculos, conhecemos muita gente. E as ideias que temos sobre a música que fazemos vão, lenta e gradualmente, mudando. Talvez pelos nossos concertos em terras estranhas, de Marrocos à Alemanha, e as visitas a título pessoal ao Brasil, Índia, Estados Unidos, torna-nos mais cosmopolitas... Quando temos vinte anos pensamos que conhecemos tudo e depois é que vamos percebendo que estamos cada vez mais longe de saber tudo». As viagens alargaram, de facto, os horizontes - musicais e estéticos - do grupo. Paralelamente, os Danças Ocultas colaboraram com o coreógrafo Paulo Ribeiro e inspiraram o livro «Alento» (de Jorge Pires). E cruzaram-se com músicos de áreas diferentes: «por exemplo, com o Pascal Contet, um acordeonista que faz música contemporânea improvisada, com músicos de jazz, com o Edu Miranda [músico brasileiro que toca bandolim e guitarra em "Pulsar"]... E isto foi tornando o som dos Danças Ocultas mais cosmopolita».

Para Artur Fernandes, «os dois primeiros álbuns são um ensaio de como fazer música para concertina fugindo à sua conotação ou à sua memória. Seria uma composição pela negativa, enquanto o novo disco é uma construção pela positiva de mais reportório para este instrumento». Pergunto-lhe se não acha que, neste álbum, se afastaram bastante de umas possíveis raízes portuguesas presentes nos dois primeiros... «Acho que sim. Mas já nos dois primeiros álbuns talvez se reconhecessem mais os ambientes tradicionais portuguesas pelo timbre dos instrumentos do que propriamente pelas composições. No novo disco, os convidados não aparecem para divergir o som, para irmos para outras latitudes, mas mais pelas pessoas em si e pelo gosto que temos pela música que essas pessoas fazem... Nós nunca nos sentimos presos à nossa rua ou à nossa terra ou ao nosso país». Mas é verdade que há viagens no novo álbum... «O tema "Sirocco" foi inspirado por um concerto em Marrocos, em 1998, em que dissemos "temos que fazer qualquer coisa com esta escala maluca". E essa é talvez das músicas que mais sofreram evoluções, porque quando fazemos uma coisa estranha à nossa vivência temos medo que fique demasiado colada à sua origem, ao postal ilustrado, ao evidente. No tema com o Edu Miranda aconteceu a mesma coisa: não quisemos fazer um pastiche da música brasileira».

Por outro lado, com a inclusão dos vários convidados - e de uma variedade grande de instrumentos, desde a voz, como a do sírio Abed Azrié ou a de Maria João, o piano de Mário Laginha, os instrumentos «bárbaros» dos Gaiteiros de Lisboa, o sintetizador e o acordeão de Gabriel Gomes, contrabaixo e percussões várias... - a paleta tímbrica do grupo alargou-se: «Isso teve a ver com a necessidade de cada uma das composições. E a isso juntou-se a afinidade que já tínhamos com muitos deles - os Gaiteiros, o Rui Júnior, o Edu, o Gabriel... - e a afinidade nascente com outros, como a Maria João e o Mário Laginha ou o Abed Azrié, que conhecemos em Paris, em 2001 ou 2002: fomos para casa dele, comemos e bebemos, mostrou-me partituras dos trabalhos dele, e ficámos de vir a trabalhar no futuro». O que veio a acontecer, e com resultados lindíssimos, neste álbum.

Pergunto a Artur se o nome do álbum, «Pulsar», tem também a ver com uma muito mais forte componente rítmica no novo disco. E Artur diz que «essa é uma leitura nova do título. Mas tendo a concordar com ela. Os Danças Ocultas eram um grupo de "paisagem musical" e este disco tem de facto uma maior componente rítmica, independentemente de estarem lá o contrabaixo, a bateria ou as percussões».

Na transposição dos temas novos para o palco, vai haver o problema da falta de muitos dos convidados. Diz Artur: «Tivemos essa consciência, mas houve o cuidado de que o tipo de intervenção dos convidados não limitasse muito a transposição para o "ao vivo", porque este disco poderia ter sido feito sem convidados, para quatro músicos, com os mesmos temas. Mas sabemos que se poderá perder alguma coisa».


DANÇAS OCULTAS
«PULSAR»
Magic Music/CNM

E, depois de seis anos de espera, o terceiro álbum do quarteto de concertinas Danças Ocultas apanha-nos completamente desprevenidos pela sua riqueza tímbrica, pela variedade de territórios musicais visitados, pela quantidade (e qualidade) dos amigos/convidados para o disco, pela descoberta do «groove». «Pulsar», assim se chama o disco, significa - dizem os dicionários - «agitar», «palpitar», «latejar», «bater», e tem tudo a ver com ritmo -- a «pulsação», o brilho cadenciado da estrela com o mesmo nome. Em «Pulsar», os Danças Ocultas atiram-se à dança já não escondida - há contrabaixos, há percussões, há mais cadências/dolências mesmo nas concertinas («Tristes Europeus») e há montes de gente convocada para o festim servido por Artur Fernandes e companheiros: o sírio Abed Azrié, que canta e toca percussões num belíssimo tema dele, «Alchimie», misto de Médio Oriente, Índia e salão europeu do séc.XIX, e ainda com um piano discreto de Mário Laginha; o mesmo Laginha que, com Maria João, leva os Danças Ocultas para uma África que poderia ter sido imaginada por José Afonso, em «Fantasia»; o bandolinista e guitarrista Edu Miranda num «Porto Seguro» que é uma festa que passa por vários géneros brasileiros (do chorinho ao baião, digo eu); os Gaiteiros de Lisboa, na tanguédia/tancomédia/medieval/experimental que é «Casa do Rio»; ou Gabriel Gomes, que produz, toca acordeão e sintetizadores (tão subtis quanto elegantes). Mas também continua lá o sopro, o ar, o vento, que já lhes conhecíamos e amávamos: (Puls)ar. (8/10)

03 outubro, 2006

Rão Kyao - Fado do Oriente


Mestre no jazz, pioneiro - entre nós - na integração de músicas de outras paragens (Índia, África, Brasil, norte de África) na sua música, fusionista do fado, Rão Kyao editou em 2004 o álbum «Porto Alto», dedicado à rota mítica «do pão, do azeite e do vinho»... Antes lançou «Fado Virado a Nascente», no qual foi em busca das eventuais raízes perdidas do fado. Aqui fica a recuperação de uma entrevista com Rão Kyao a propósito deste disco, publicada originalmente em Março de 2002...


RÃO KYAO
NÓS NÃO TEMOS UM FADO, TEMOS CEM

Em «Fado Virado a Nascente», Rão Kyao regressa ao canto tradicional urbano lisboeta para o levar para outras paragens. Onde, se calhar, muitas vezes já lá estava e pouca gente o admite: o Magrebe, aquele norte de África que está só a alguns quilómetros de nós mas é muitas vezes esquecido. Por questões históricas, políticas, culturais, religiosas... só Deus (ou Alá, outra maneira de dizer Deus) sabe. Em «Fado Virado a Nascente», Rão une as suas flautas de bambu indianas à guitarra portuguesa e à viola, a percussões e violinos marroquinos, à voz fadista de Deolinda Bernardo e, num tema, de Teresa Salgueiro, numa viagem de ida e volta do fado à música árabe.

A primeira ligação óbvia de Rão Kyao - na altura já figura de proa do jazz nacional - ao fado foi a gravação, em 1979, de «Mocinha dos Caracóis», para o álbum «Goa», em 1979, gravação que acabou por ficar de fora do disco. Mas em «Fado Bailado» (1983) já todo o álbum era composto por temas tradicionais do fado, com o saxofone a substituir a voz: «Já tocava certas músicas que tinham que ver com o lamento do fado, mas não lhe chamava fado porque não tinha guitarra e viola. No "Fado Bailado" a aproximação foi efectiva. Para mim, o fado não é a maneira de tocar ou cantar. É a alma. E o resto vem atrás». Muitos anos depois, surge «Viva o Fado» (de 1996) em que é a flauta a «cantar» o fado. E em 2001, «Fado Virado a Nascente», em que, pela primeira vez, ao lado de Rão surgem vozes a cantar o fado: «As pessoas identificam sempre o fado com uma voz. Quando pensei fazer o disco não o pensei com voz, como ainda não tinha a ideia de ir buscar os músicos ao norte de África. Mas tive que pensar numa maneira de apresentar esta ideia de uma forma mais interessante para as pessoas, de modo a que a ideia não se perdesse - e aí foi o Pedro Ayres Magalhães (dos Madredeus) que me ajudou muito. A Deolinda Bernardo foi uma grande surpresa. Ela canta o fado, mesmo».

«Fado Virado a Nascente» é um disco de tese: «Para mim não há dúvida nenhuma que o fado apanhou muitas influências diferentes. Nós não temos um fado, temos cem. Por exemplo, a Maria Teresa de Noronha tem a ver com um canto mais palaciano, mais do norte, e a Amália Rodrigues tem muito mais a ver com o sul, com os árabes - e ela própria dizia isso. O fado que é inspirado nas ladainhas, nos pregões, vem do norte de África. O Alfredo Marceneiro compunha fados a ouvir os pregões. Quem ouve a Argentina Santos vê-se no deserto. É esse canto, esse lamento, que não tenho dúvidas de onde vem. Isso perdeu-se um bocado, está muito "canção" e virou as costas ao choro, à melopeia... O Gazi (violinista marroquino que participa no álbum) toca e o espírito do fado está lá».

Rão Kyao não se sente integrado em qualquer «movimento», de renovação do fado ou outro qualquer: «Incomoda-me o fado-canção, onde há cantores muito bons mas não são fadistas. E há óptimos fadistas a quem não se liga nenhuma. Sinto-me mais identificado com fadistas como o Manuel de Almeida, que era de uma intensidade emocional constante. A Argentina Santos, que é uma lenda-viva, representa o fado verdadeiro. E este disco aponta para esse lado. Se o resto é renovação ou não, já não me cabe a mim dizer».

Depois de ter passado pelo jazz, Rão já passou por variadíssimas paisagens que lhe serviram de inspiração (Índia, África, China, Brasil, o flamenco, o fado...). E Rão acha que «o maior contributo do jazz, para mim, foi a abertura para outros sons e para outros lugares. Libertei-me do fraseado do jazz, mas a abertura, a liberdade, a vontade de investigar ficou».

02 outubro, 2006

Caetano Veloso, Seu Jorge e Think of One - Rock'n'Brasil, Brasil'n'Roll


Se a bossa nova foi uma junção mais que perfeita de música brasileira com o jazz (acabando por influenciar o rumo deste género nascido nos Estados Unidos), o tropicalismo foi - e é, porque o tropicalismo continua vivo... - a reunião de muito do que de melhor tinha a música brasileira e do melhor que tinha o rock. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes foram os pioneiros de uma fusão que deu frutos no Brasil e este país nunca mais deixou de estar virado para as linguagens pop/rock e seus derivados (com o movimento «contrário» a ser feito, também, por inúmeros artistas: David Byrne, A Certain Ratio, Liquid Liquid, Paul Simon, Sting, Everything But The Girl ou, mais recentemente, inúmeros projectos de música electrónica alemães, belgas, ingleses, japoneses, a irem ao Brasil buscar os ritmos que faltam nos computadores e sequenciadores). E, no Brasil, bom rock nunca faltou, de Rita Lee a Fernanda Abreu, dos Legião Urbana e Paralamas do Sucesso aos Sepultura, dos Ratos de Porão a Carlinhos Brown. Às vezes com mais Brasil, outras vezes com mais rock. Os álbuns de aqui se fala - Caetano Veloso (na foto), Seu Jorge e o colectivo belga-brasileiro Think of One - são bons exemplos, recentes, de como os dois universos estão tão próximos...


CAETANO VELOSO
«CÊ»
Universal Music

Um dos papas - o Papa? - do tropicalismo, Caetano Veloso, regressa aos álbuns de originais com um disco, no mínimo, surpreendente. Sem a «muleta» (muitas vezes uma bela muleta, diga-se) das orquestrações de Jaques Morelenbaum, Caetano atira-se a um álbum rock nas suas mais diversas coordenadas: o funk, o pós-punk, o punk, o psicadelismo, alguma coisa de noise e experimental. Mas, claro, também com outras referências aqui e ali. O segundo tema do álbum, «Minhas Lágrimas», tem essência de fado, perfume de ranchera, fragrância de alt.country e é de uma tristeza inacreditável. «Waly Salomão» é psicadelismo a dar mais para os cogumelos (com açafrão marinado em sitares indianas) do que para os ácidos. «Não Me Arrependo» é uma belíssima balada sixties com citação de «Walk On The Wild Side». «Odeio» faz lembrar... Xutos & Pontapés. «Porquê?» (a tal que tem sotaque português de Portugal e em que ele repete várias vezes «estou-me a vir» - talvez como eco onírico da sua inveja dos orgasmos múltiplos das mulheres na canção anterior, «Homem») é um divertimento inconsequente. «O Herói» é um rap sobre como crescer na favela com guitarras de Sonic Youth. Quer dizer, «Cê» é um álbum obviamente desequilibrado, mas com alguns temas lindíssimos e é mais interessante quando não é tão rock. Mas uma coisa continua a ser verdade: ninguém tem esta voz de veludo mais veludo não há, são raros os que têm esta capacidade de dizer mil coisas num jogo de três ou quatro palavras (seja a falar de sexo, de separações traumáticas, de atentados terroristas ou de desequilíbrios sociais) e são cada vez mais raros os artistas que, ultrapassados os 60 anos de idade, ainda conseguem fazer um álbum de que ninguém está à espera e que será motivo de discussão durante muito tempo. (7/10)


SEU JORGE
«THE LIFE AQUATIC STUDIO SESSIONS FEATURING...»
Hollywood Records/EMI

O último tema do novo álbum de Caetano Veloso, «O Herói», faz o raccord quase perfeito com a personagem que é Seu Jorge: cantor e actor nascido numa favela da Baixada Fluminense que escapou a um destino, digamos, previsível (Seu Jorge viveu nas ruas do Rio de Janeiro durante três anos) quando se revelou como compositor de talento nos Farofa Carioca ou, a solo, nos álbuns «Samba Esporte Fino» e «Cru». Curiosamente, em «The Life Aquatic Sudio Sessions Featuring Seu Jorge», o compositor apaga-se para realçar as capacidades interpretativas (re-interpretativas) do cantor Seu Jorge: neste álbum, Seu Jorge recria (nas inventivas letras em português e nos arranjos, só para voz e guitarra acústica) variadíssimos temas de sucesso de David Bowie - de «Rebel Rebel» a «Rock'n'Roll Suicide», de «Life On Mars» a «Changes», de «Ziggy Stardust» a «Suffragette City» -, com um amor, uma inventividade e um bom gosto inacreditáveis. Seu Jorge inventa aqui vários espécimenes musicais novos, do glam-samba à acid-bossa nova e ao pagode psicadélico, com letras que falam da realidade brasileira e de sentimentos pessoais, sempre com o truque adicional de incluir as palavras em inglês do título original (ipsis verbis ou ligeiramente adaptadas foneticamente) na canção. O último tema é um original divertido, «Team Zissou», e todos eles pertencem à banda-sonora do filme «The Life Aquatic with Steve Zissou», de Wes Anderson (filme em que Seu Jorge participa como actor, ele que se tinha dado a conhecer ao mundo em «A Cidade de Deus»). Pois é, falta «Heroes» para o raccord ser completamente perfeito. (7/10)


THINK OF ONE
«TRÁFICO»
Crammed Discs/Megamúsica

Os Think of One são uma divertidíssima trupe de Antuérpia que sempre procurou o cruzamento de inúmeras linguagens derivadas da música anglo-saxónica (o rock, o funk, o reggae, o jazz..) com muitas outras músicas. Editaram, entre outras aventuras, três álbuns de fusão da música ocidental com a música marroquina (especialmente gnawa e houara) no projecto Marrakech Emballage Ensemble e viraram-se, desde «Chuva em Pó», para a música brasileira. «Tráfico», o álbum mais recente, é um grande, grandíssimo, exemplo de coabitação (os Think of One gostam de lhe chamar «multiculturalismo) de muitas músicas «modernas» com o samba, o forró, o baião, o pagode, o cavalo-marinho ou o maracatú numa festa interminável que mete ao barulho, sempre de forma coerente e orgânica, funk, electrónicas, salsa, reggae e dub, punk ou uma estranhíssima citação do genérico do «Bonanza». É cantado em francês, flamengo e português, com músicos belgas e muitas colaborações de músicos brasileiros recrutados no Recife para o álbum e para os espectáculos (quem os viu em concerto em Loulé sabe que o resultado é absolutamente incendiário). E ouvir uma senhora velhinha - a extraordinária cantora D.Cila do Côco - apelar ao consumo de maconha e de cachaça em «Tirar Onda» é tão surpreendente quanto ouvir Caetano Veloso a dizer que se está a vir. Com a diferença de que aqui se dança mais... (9/10)